domingo, 22 de novembro de 2009

Strange Fruit - Chapter Two

Há algum tempo atrás ouvi uma doutora em antropologia pela UNESP, da qual só lembro o primeiro nome - Berenice, dizer que a miscigenação brasileira foi estratégia de dominação por parte do colonizador. O mestiço que surgiu da união dos portugueses com indígenas não era filho legítimo deste europeu, logo não tomaria parte do poder do colonizador, mas também não era mais um nativo para lutar contra o domínio imposto de fora. O jeito que me refiro a isso é simplista e até meio sentimental, porque na verdade o colonizador casava com mulheres indígenas com a anuência dos líderes das nações indígenas, para se tornar parte daquele povo e dizimar indígenas de outras nações. Ou seja, o nativo participou ativamente desse processo de miscigenação, por meio de alianças políticas que também interessavam a eles. E assim nasceu a nossa Nação de Vira-latas.

Hoje esse traço misturado do povo brasileiro é celebrado, eu mesma bem gosto de ter nascido com essa tara*. Depois de muito tempo, porém, fui perceber como a misturada rendeu formas peculiares de discriminação. Como eu já disse, não nos reconhecemos pela "raça", pelo sangue - até tentaram, havia aquela papagaiada de dizer que fulano era um "Quatrocentão", sendo que a origem desses fazendeiros paulistas era exatamente a que eu descrevi no parágrafo anterior, com o sangue índio misturado ao português. Então o que sobra é a cor da pele para se reconhecer.

Vi isso claramente há algumas semanas atrás. Na sala de informática, Bethinha, professora de inglês, mostrava fotos e vídeos de Marthin Luther King para nossos alunos de sétima série, para montar uma encenação e eu estava lá, de xereta. Ao ver as fotos de Rosa Parks, que tinha um tom de pele um pouco mais claro, os alunos teimavam em dizer que ela não era negra, e eu tentando explicar que para o estadunidense não existe meio termo (até Michael Jackson foi de negro a branco praticamente sem escala), que para eles não existe mulato, moreno cor-de-jambo, moreno café-com-leite, moreno isso, moreno aquilo, isso é coisa de brasileiro. Até quando uma aluna negra e muito bonita diz: "Se ela é negra, sou o que? Carvão?" Aí, perdi a pose, caí na risada. "Morena cor-de-disco, que tal?"

E nesta última semana, trocando figurinhas com Bethinha, fui mostrar para ela Billie Holiday cantando Strange Fruit, marco na história da música por ter sido a primeira canção que falava abertamente sobre a situação de preconceito racial nos Estados Unidos e eu acabei por descobrir coisas sobre esta canção que nem eu mesma sabia. A letra foi escrita com base em uma foto que retrata a cena mais horrorosa que eu já vi na minha vida, por isso nem me atrevo a colá-la aqui . Ninguém faz ideia do pavor que sinto só em escrever sobre ela, em ter que lembrar e tremo só de pensar que aquilo foi real. A intertextualidade entre a cena, a poesia da letra e a interpretação doída da Lady Day é perfeita.




Até se cantasse Atirei o Pau no Gato, essa mulher cantaria com todo o seu ser a dor do gato atingido. Strange Fruit, porém é a mais pungente de todas e mesmo sem saber inglês, percebe-se que ela não está falando de uma fossa habitual, o sentimento com que ela canta é indescritível com palavras, toda a dor do mundo está ali.

O resto da história está bem contada no link. Sugiro que todos cliquem e leiam atentamente, não só os corajosos e curiosos, porque é bom uma dose de realidade de vez em quando. É bom saber que gente da mesma espécie que nós, organicamente igual a você e a mim, foi capaz de cometer aquela crueldade , e nunca mais se esquecer, para que isso jamais se repita. E olha que não é difícil.

"A gente não sabia que não era um índio, a gente pensou que era um mendingo!" (1997)

Miserere nobis, Domini.

2 comentários:

¡B! disse...

qual a cor da voz?

Frida f5 disse...

A cor do fígado. Quando ouço essa música, tenho a impressão que ela canta com o fígado.