quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Cansada de gente

Dom Angélico, mítico ex-bispo da região Brasilândia, costuma dizer: "Quem não reza, vira bicho!" Ele sempre foi bravo assim, sem meios-termos. E eu criança ouvindo isso, não entendia nada. Sei lá quantos anos depois, só agora fui sacar realmente o que ele estava querendo dizer com sua marca-registrada. Religiões à parte, o humano só é humano quando deixa de viver só apenas em função da sobrevivência, quando passa a refletir, a amar, a buscar transcendência, sentidos numa existência onde de fato não há absolutamente nenhum.

Nunca entendia direito também essa de "virar gente". Em tempos de Brasil Colônia, índigenas - nativos dessa terrinha - e negros escravos eram considerados "gentios", ou seja, animais da espécie humana. Gente mesmo só se fosse europeia, católica e branca. Grande merda. Mais uma sutil estratégia de dominação, desculpa mole para as atrocidades da colonização. Imagino que a tal expressão tenha ecos nessa ideia de que nem todo espécime de Homo Sapiens é gente. (Vemos atrocidades o tempo todo que nos fazem acreditar nessa máxima, mas isso é outro assunto.) Uma vez, meu pai, ao me ver menor de idade e cheia de vontades de levar minha vida para onde eu bem entendesse, me disse que antes eu tinha que virar gente. Fiquei extremamente ofendida e pensando: "Porra, eu já não sou gente???" Pois é. Entendi muito tempo depois e adotei a máxima para os alunos. Quando eu falo "Vira gente, meu!", seria algo como "Humanize-se! Daqui a pouco você vai rastejar e grunhir aqui!", mas estou percebendo agora como essa metáfora é perigosa. Não tenho tido nenhum orgulho de ser gente.


Estou cansada de gente. De ver, de conviver, de ser. Desilusão à enésima potência? Pode ser. Uma sensação terrível de que ninguém mais é tão confiável quanto parecia, nem eu mesma. Também, mas isso não importa. Afinal, esse monte de palavras desconexas são como lágrimas na chuva, gritos no vácuo: ninguém ouve, ninguém percebe. Se eu escrevo é porque talvez alguém se identifique com esta mensagem na garrafa e também peça socorro, neste mar feito de rede.

Gente tem me cansado porque é toda feita de discurso vazio, de uma carência sugante e uma necessidade tacanha de ganhar espaço em detrimento do outro. Será que precisa ser necessariamente assim? Sempre acreditei que não, mas estou percebendo que também sei jogar sujo, e se não faço, é porque não quero. Mas chega uma hora em que alguns confundiram as coisas: "Aquela doidinha é desencanada!". Mentira. Subestimar um louco é uma loucura ainda maior. Desde criança, sou rancorosa, mordaz, agressiva e mesquinha. Na verdade, quando eu era criança, era até pior. Escolhi ser diferente, mas quando o sangue sobe, não enxergo um palmo na minha frente e não é difícil me tirar do sério. Tem gente que me testa, e se assusta quando vê o quão terrível pode ser meu ódio. Tem gente que tenta me manipular, porque os irracionais perdem a razão e seu direito, né? Felizmente, tenho caído na real quanto a isso.

Diz a educação "cristã" que odiar é ruim, de fato não é nada agradável. Tem maluco que acha que eu gosto de ser briguenta, talvez porque não tenha a dimensão do quanto eu sofro com isso. (Se eu fosse macho, é possível que eu fosse um brucutu da pior espécie, acho até que o fato de ser mulher não tira de mim a condição de brucutu.) Só que tem horas que o meu ódio é o melhor de mim mesmo, tanto quanto o do Amor da Minha Vida, o Drummond. A educação cristã é hipócrita também, todos sabem. Nela, é ruim odiar, mas não tão ruim quanto se omitir diante de fatos que a própria visão cristã diz ser errado. Eu sou cadela, só vejo preto e branco. Ou é ou não é. Maniqueísta assim, primária assim.

Não sei se o que estou dizendo tem nexo, nem mesmo sei se tenho razão. "O homem que diz sou não é, porque quem é mesmo 'é', não 'sou'." Então, dou minha cara à tapa. Não falo com a pretensão de quem se coloca à parte daquilo que se critica, não há distanciamento nenhum nessas palavras. Está tudo turvo e confuso na minha cabeça.

No fim das contas, ninguém sai vivo daqui. É tiro pra todo lado e a cena final, é a mesma de Hamlet: todos mortos por insanidade e ignorância. Agora entendo na carne o verso do Fernando Pessoa, que tive a ousadia de musicar: O resto é gente e alma/ Complica, fala, vê/Tira-me o sono e a calma/E nunca é o que é.

Só os humanos são assim. Salve-se quem puder, de mim.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

The Cranberries

São Paulo me recebeu com chuva. Percebi que estava entrando na cidade quando o avião entrou por um amontoado de nuvens, como se estivesse mergulhando em algodão. Sorri e falei para Terra da Garoa: "Sabia que você não me daria trégua! Mas não tô nem aí, estou aqui de novo!!" Desembarquei no Congonhas pronta para outra. Tinha um encontro com o lendário ano de 1997, ano em que descobria, entre uma confusão e outra, a mim mesma e The Cranberries.

Quem me apresentou The Cranberries foi meu amigão da sétima e oitava série, o Gilson, tão louco por música quanto eu, apesar das diferenças - eu estava moldando minha personalidade à base de rock n´roll e ele, adorava pop. Ele me apresentou o terceiro album da banda, To The Faithful Departed. E eu fiquei louca por Salvation, Free to Decide e depois as mais antigas e conhecidas: Linger, Ode to my Family, Zombie.

Essa minha turminha do Derville era engraçada. Não estávamos nem aí para os "populares", os aborrescentes que faziam a maior força para mostrar que já eram adultos. Éramos bem crianções, a gente vivia rindo, brincando e cantando. Alanis Morissette, No Doubt (a banda preferida do Forrest, rsrs) e até Spice Girls estavam no nosso repertório. Direto e reto cantando, parecia até musical da Metro.

Esta era acabou quando concluímos o Ensino Fundamental, quando só eu consegui passar para o curso de Mercadô e a Isabel para o de Magistério. Fiquei totalmente órfã destes malucos e dos nossos dias de Família Do-Re-Mi. Minha vida foi por outro rumo e este tempo ficou perdido nas ruínas da memória. Até sexta passada, pelo menos.

O show do The Cranberries - pela primeira vez no Brasil, ora essa! - funcionou como uma máquina do tempo, para mim e para todos que estavam lá, eu aposto. Quando tocou Salvation, quase no fim do show, nem precisei fechar os olhos para ver o Splash sacolejando em volta de mim, toda vez em que eu comprava uma ficha na Jukebox que havia por lá só para ouvir essa música e sair pulando pelo bar, catarticamente.

Eles fizeram um show seguro, afinal trata-se de uma banda com uma coleção de hits para escolher e para mim, nenhum ficou de fora. Salvation, Zombie e Ridiculous Thoughts na sequência quase me mata do coração! Como bem observaram algumas resenhas que eu li, eles fizeram um retrato da década de 90, o único album dos 2000 foi lembrado em somente uma música. E todas foram cantadas pelo público, palavra por palavra. Os hits e as obscuras. As lentas e as agitadas. As alegres e as soturnas. Todas.

Eu sempre disse que tenho bronca de bandas que vêm ao Brasil depois de mil anos em turnês caça-níqueis, mas sinceramente, não creio que seja o caso do The Cranberries. Se fosse assim, Dolores e sua trupe não fariam um show tão cheio de alma e vigor, como este, que emocionou pra valer todos os neo-tiozinhos que estavam lá, inclusive a professorinha fazedora de textículos aqui.

Ela prometeu voltar, espero que, dessa vez, com um novo álbum do The Cranberries. Porque todo este retorno ao passado para mim se presta apenas a um sorriso por saber que eu era feliz, e sabia, como tenho sido hoje. Eu quero é mais, nosso tempo é agora.

Só senti falta mesmo de uma coisa: Gil, você não estava lá!!! Onde você foi parar, cabra???