quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Gente Normal É Mais Louca Que A Gente Pensa

O Agosto calorento passou. Seco e fustigante, mas não me importo. Não precisava de dois invernos rigorosos no mesmo ano. Sol de agosto é sol de inverso. Se é normal no verão, é subversivo no inverno. 

Mês de aniversário de nascimento de Nelson Rodrigues, faria 100 anos. Putz, modinha é foda. Bate com aquela frase dele - unanimemente repetida - que toda unanimidade é burra. Primeiro porque não precisei esperar o Nelsão fazer 100 anos para descobri-lo. Ok, sou professora de Artes Cênicas, está no meu metiê, só que não é só isso. Ele entrou no meu universo, furou meu óvulo: tá na carne, me penetrou.

Segundo porque está se repetindo e se exaltando (à exaustão!!) que ele era um moralista assumido, teoricamente muito mais honesto que os falsos moralistas dos anos dourados brasileiros, parente próximo do politicamente correto dos nossos tempos. Agora pergunto como um moralista pôde ter um trabalho censurado por mais de 20 anos (a peça Álbum de Família), por conter na peça toda a sorte de perversões e incestos? E ele não só revolucionou na temática como no tratamento dramatúrgico: Vestido de Noiva conta a mesma história em três planos (o real, os delírios de Alaíde e a memória), algo até então inédito no teatro brasileiro. 

Essa papagaiada a gente acha em qualquer resumo de literatura para vestibular, mas a questão que o senso comum só pensa na sacanagem do homem, pelo mesmo motivo que os personagens que outrora ele retratou eram todos meio maluquetes: sacanagem neste mundo não se pensa, se faz; e se faz, tem que ser na surdina e se sentir culpado depois. Até hoje Freud e a Bíblia é uma fábrica de tarados em série. E neste ponto, ele foi moralista mesmo: quem seguiu seus desejos foi severamente punido pelo implacável Anjo Pornográfico, que poderia ser um Arauto do Evangelho de tão puro. Só não foi porque abriu esse universo a base de bisturi sem anestesia e jogou as vísceras na cara de todo mundo, provando por A mais B um velho mote meu: gente normal é mais louca que a gente pensa. 

Dizia ele que só as mulheres normais gostam de apanhar, as neuróticas é que reagem. É a frase dele que mais ouço ser repetida, depois daquela da unanimidade. Nestas horas, ninguém torce o nariz para ele, e  nem para suas taradices. É o que mais tem sido exaltado pela imprensa marrom nos anos de Nelson no boom da sua obra. (Coitado!) Tanto que, na primeira reprise dA Vida Como Ela É, qual foi o primeiro episódio? O hilariante "Como eu esperei por esta bofetada!" 


A burrice da unanimidade deveria ter limites. Para quem consegue entender no máximo piada de papagaio e pseudo-músicas onomatopeicas, a ironia e o cinismo desta frase é demais para serem digeridos sem distorção. Apesar de neurótica (confessa, assumida e ciosa desta condição), sei exatamente do que ele está falando. A gente gosta mesmo é de ver macho - principalmente os mais empedernidos e orgulhosos desta condição - perdendo a cabeça, descendo do salto, pirando no tomate, mandando o lado direito do cérebro praputaqueopariu. Se não for por tesão, vai na porrada. E nem precisa chegar às vias de fato. Mas ouvir que mulher gosta de apanhar é música para os ouvidos de uma sociedade onde ainda o feminicídio é tratado com normalidade. 

O que ninguém tem falado sobre o Nelson, pelo menos não tenho ouvido por aí, é sobre como é bom encenar e interpretar sua obra. Detalhista, deixa claro para os atores e diretores o que quer de cada cena, cada fala. Poético até nas rubricas, e principalmente nelas. Nem um pouco minimalista, nem naturalista, tudo dilatado, afinal teatro é isso: vida com lente de aumento. Atores e atrizes que se fizeram no palco (excluindo-se os ator-mentados e atriz-tezas, é claro) se esbaldam fazendo Nelson. Dá para pôr todos os demônios à solta para brincar em cena. Como sei disso? Já fui Lúcia, de O Vestido de Noiva, a irmã fura-olho da Alaíde. Vilãs recalcadas e ressentidas: vem nimim, todinhas!



Pela minha personalidade eu deveria detestar Nelson, mas já devem ter percebido que é justamente o contrário. Ele, de tão moralista, acabou mordendo o próprio rabo e acabou virando um tarado mesmo, um tarado pela condição humana. E como é triste a nossa condição! Por uma fodinha, a gente se mete em cada presepada: homens e mulheres, puritanos e safadinhos, ninguém se salva!

PS: O legal deste boom rodrigueano são as reprises de A Vida Como Ela É e Engraçadinha. Mas  estas adaptações globais, apesar de muito boas, ficam bobinhas perto da versão teleteatro tenebrosa de O Vestido de Noiva, do Antunes Filho, Du caráleo! Quanto às encenações, são tantas opções que ainda não vi nenhuma este ano! :P