quinta-feira, 30 de setembro de 2010

É tudo uma questão de ângulo

"... se nossa visão é feminina é porque somos mulheres, bolas!..."

Pensei que nunca mais usaria o marcador "cartas" deste cafundó eletrônico, mas o fato é que felizmente, vou. Depois da carta inentregável e ridícula que escrevi e a carta entregável possivelmente fake da Sophie Calle, eu deixo exposta à toda comunidade texticular uma que escrevi para a Bruna (Erro de Paralax), atendendo a um pedido que ela fez séculos atrás. Só agora consegui empreender a tarefa. Já que ela disse que eu DEVO publicar - ela disse deve, bem categórica - quem sou eu para negar? Taí:

De: Flávia Teodoro Alves
Para: Bruna
Data:  28 de setembro de 2010 21:35
Assunto: É tudo uma questão de ângulo - Até que enfim o texto saiu!

Bruna,

Feliz aniversário atrasado!

Há séculos você me fez uma pergunta bem difícil de se responder e não deveria ser tanto. Gastei tinta, papel e madrugadas tentando responder. Pura bobagem. "O que é ser mulher hoje?" não deveria ser um enigma, sou mulher hoje e desde que nasci, até onde me lembro. Primeiro achei o que o problema era o "hoje", depois o "ser" e finalmente, o MULHER. Muito se fala em universo feminino, há tantos clichês sobre, pouco se sabe de fato, talvez porque os clichês satisfazem a todos, homens e mulheres. Subo no salto, pinto as unhas e os lábios de vermelho e já sou mulher. Fácil, se fosse verdade.

Cresci numa casa cheia de mulheres, mas ninguém me contou o que era ser mulher. Quando percebi isso, fiquei indignada. Depois, percebi que ninguém poderia me contar aquilo que não sabia. Resultado: estou tateando no escuro desde então e só agora uma coisa ou outra parece mais clara. Já dá para perceber, minha querida, que em vez de respostas, estou te dando mais perguntas.

Pensei primeiro no símbolo máximo do feminino, à maneira bem freudiana: a mãe. A minha é uma figura fascinante e totalmente contraditória, dependente e general, dura e amorosa, tudo ao mesmo tempo. A única instrução que ela me deu com sobre papel feminino era com relação apenas à rodos e vassouras. "Que bagunça, menina, como você vai cuidar de uma casa assim?". "Quem disse que eu quero?", resposta da adolescente insolente que escreve agora com um pé na balzaquianice.

Hoje, sei que ela não faz por mal. Também não disseram a ela xongas nenhuma o quão longe ela poderia chegar, e como tantas outras de nós, ela passou de uma prisão à outra: primeiro a família, depois o casamento. Ela nos deu, sinceramente, o que tinha e sou grata por isso. Mas, hoje não, obrigada. Tentei imitar o modelo dela e das minhas irmãs sem pensar e levei uma rasteira, talvez porque ainda precisava primeiro descobrir quem eu era antes de assumir um modelo por pura imitação. Hoje percebo que a grande maioria das pessoas faz isso, e depois se sentem profundamente enganadas. Passam a vida inteira sem saber quem são, se são alguém de fato, fazem o que a sociedade manda ou que supõem que manda, e quando encaram a frustração, a quem vão culpar?


Não sou contra o casamento, sou a favor de que nós façamos o que realmente queremos. Se isso for casar-se, por que não? O que estou percebendo e isso é tão importante, é primeiro ser autônoma antes de qualquer escolha. E não somos criadas para isso, não é? Somos parte de uma geração já considerada liberal, em tese a geração das nossas mães já era emancipada e odiosamente tudo continua tão patriarcal! Olha só que engraçado, à mesma época - os míticos anos 1960 - em que não só sutiãs, mas pílulas e minissaias também estavam pegando fogo - faziam sucesso seriados como Jeannie é um Gênio e A Feiticeira, totalmente American Way Of Life, com donas de casa imaculadamente belas e loiras cuidando de seus maridos, em suas belas casas tão bem decoradas. Mais pequeno-burguês, impossível.

Já conversamos sobre isso no dia do ensaio, para mim a emancipação do feminino de fato não aconteceu, porque é tempo demais com as sociedades desprezando o feminino. Jean-Yves-Leloup, padre e psicólogo junguiano francês, diz que as aparições da Virgem Maria, como em Lourdes e Fátima, acontecem em épocas de profunda negação do feminino. Não só de desprezo à mulher em si, mas tudo que se refere à polaridade feminina no universo. E esse desprezo continua, desgraçadamente. Tantos crimes atentando com a vida da mulher, como o caso Eliza Samudio e Mercia Nakashima, mostram que para certos homens, o corpo da mulher ainda são propriedades e lhe é negado qualquer poder de escolha. Se isso fosse mentira, A Lei Maria da Penha não teria a menor razão de ser.

Tudo que estou compartihando com você me instiga desde muito tempo. Às vezes me pego pensando: não é fácil ser mulher. Quando me pergunto o porquê, não consigo entender de fato. Talvez porque o feminino é interno, recôndito, implícito. Da Lua, símbolo tão fortemente feminino, só conhecemos uma face. Às vezes penso que este desprezo, na verdade, é pavor pelo desconhecido.

Às vezes eu brinco com as pessoas: falo que se houver uma reencarnação minha, que ela seja homem. De vez em quando me canso de tanta menstruação, meu feminino é muito dilatado. Mas que minha próxima encarnação seja homem e gay. Ser um homem feminino, como na canção. Não afeta em nada o meu lado masculino.


Sabe que já me perguntaram se sou lésbica. Ao perguntar o porquê da pergunta, a resposta: ah, você é feminista. Que grande idiotice: para você assumir o seu feminino perante a sociedade, tem que ser feminista e ser feminista é ter raiva de homem? Se for meu caso, não tenho, não. Já tive, me sentia vítima dos garotos por quem me apaixonava. Mas tenho verdadeira fascinação pelo que se poderia chamar de universo masculino. Vivo penetrando em Clubes do Bolinha, falicamente. Felizmente, meu pai, nunca foi "pai de donzela" - aliás, ele sempre disse que todo pai de donzela moralista e metido a machão que ele conheceu pagou a língua, logo, ele nunca pegou no nosso pé. Meus amigos mais antigos são homens, sou a única garota da banda, você viu.

É tudo uma questão de gênero, e isto muda a todo tempo. Vejo as pessoas se apropriarem apenas de rótulos, não de suas polaridades femininas e masculinas. E todos têm as duas. Acho que deveriam tentar se entender.

Então não sei o que é ser mulher hoje, minha amiga. Só sei que gosto de ser. Para fechar, deixo com você um poema da Elisa Lucinda já publicado no TM antes, talvez elucide suas buscas! Boa Sorte!


Beijos,


Flávia.