“Uma árvore que cai faz mais barulho
do que uma floresta que cresce.”
O
texto “Por uma Educação Menor”, de Silvio Gallo, foi um dos presentes que
recebi enquanto realizava a pesquisa de mestrado. Ele apresenta três conceitos
que são fundamentais para resistir e continuar promovendo uma educação
transformadora, mesmo em tempos tão sombrios como os nossos: educação maior, educação menor e professor militante. Em suma, educação maior é aquela dos referenciais
curriculares, das avaliações externas, das metas que reduzem o complexo
universo das comunidades escolares em números desconectados da(s) realidade(s).
Educação menor seria a educação
possível, aquela que efetivamente acontece nas salas de aula, no contato direto
com a realidade, entre as pessoas que compartilham desse mesmo universo. Professor militante é aquele que realiza
seu trabalho assumindo seu caráter minoritário perante a Educação Maior, aquele
que “cava seu buraco, com a alegria de um cão”.
Ontem vimos muitos buracos, cavados por muitos cães. E esses
buracos formam túneis, que se interligam e formam uma rede, um labirinto. É um
incrível mundo subterrâneo, que nem o País das Maravilhas poderia fazer frente
a um lugar tão fabuloso.
Em
verdade, o que presenciamos na entrega do Prêmio Paulo Freire de Educação
Municipal é apenas um recorte desse universo. Há mais que 80 cães ou 80
buracos. Somos muito mais, resistindo criativamente - trabalhando nas
ausências, nas carências, nas fendas, nas fissuras que a Educação Maior deixa
escapar. Isso mostra que não há neste mundo carrocinha que nos faça parar de
viver com o focinho enfiado na terra, cavando e desenterrando tesouros, e o
rabo abanando lá em cima, felizões da vida.
Faltou você, Carmen
O
CIEJA Prof.ª Rose Mary Frasson foi representado pelo projeto “Múltiplas
Linguagens e Direitos Humanos”, coordenado pelas professoras Carmen (Artes),
Cris (Português) e eu. O PMLDH também fez parte da pesquisa que realizei no mestrado
em Artes pela UNESP entre 2015 e 2017, que resultou na dissertação “Corpoarte:
Felicidade e Resistência”. O PMLDH também fez parte da edição de 2016 do
Projeto Apoema, que existe desde 2010 e é parte importante da nossa proposta pedagógica
e do nosso currículo.
Dá
para perceber a importância de tudo isso, gente? Não de concorrer, ou de ganhar
o prêmio, mas sim de vermos e sermos vistos. De perceber, que mesmo com tantas
investidas contra uma educação pública e de qualidade, existimos e resistimos.
Ocupamos os terrenos baldios próximos às escolas, e o lugar que antes só
abrigava lixo e ratos, passa a abrigar cultura, feita por nós e para nós. Gritamos
nossas dores e alegrias com poesia. Vestimos nossos cocares, nosso batom e
salto para mostramos que a EJA existe, LGBTQ´s existem, as comunidades indígenas
existem em São Paulo.
Em
meio a tantos ataques e retrocessos na Educação Maior – Escola Sem Partido, DEforma
do Ensino Médio, retirada dos conteúdos relacionados a gênero e sexualidade no
Plano Municipal de Educação, entre outros tantos e lamentáveis absurdos – saber
de tantas iniciativas exitosas e bem fundamentadas me causa uma alegria imensa.
Ao ouvir, neste mundo subterrâneo, uma floresta crescendo, silenciosamente.
Desapego
é bom. Faz-nos perceber que a vida, em sua transitoriedade, se faz eterna e que
ela é maior que nossos desejos.
Entretanto,
sempre vivo uma tensão a respeito de minhas memórias, sobretudo as físicas. O
que manter e o que mandar para o Buraco da Memória? Porque os arquivos são
poderosos quando revisitados, tanto que faço isso com certa dificuldade.
Confrontar-se fisicamente com seus manuscritos de anos atrás, as roupas que não
te servem mais, sua voz desafinada da sua primeira vez num estúdio. Não é a
mesma coisa que digitalizar, colocar na nuvem, virtualizar. Sentir o gosto é
necessário, esquisito e às vezes, muito incômodo.
É
preciso revisitar as nossas memórias mais dolorosas. Voltar a fita, revirar
nosso Relicário de Lembranças Adoradas. Rir com as nossas bobagens, chorar pelo
que se foi. Cheirar aquela camiseta velha e abraçar-se com ela. Sentir saudade.
Em
todo caso, desconfio demais dessa “era do desapega”. Não é possível se
DESapegar, se você nunca se apegou a nada. Acha que foi fácil me livrar do meu
cobertor velho de criança, o qual eu literalmente comia, fio a fio? Uma hora
aquilo fedia. Minha mãe deu seu jeito! (Risos). Então, o que muita gente chama
de “desapego” pode ser, na realidade, um profundo e completo... descaso.
E
sabe de uma coisa? Esse tipo de “desapego” não me interessa nem um pouco. O que
raspa a minha superfície é o que me faz cantar. Eu não sou blasè, não sei como se faz isso e nem quero. Amo de um jeito old school e realmente acho esse
desapego desmemoriado uma bosta.
Isso
não significa que eu não parta nunca, ou que não deixe partir: a hora exata de
devolver uma conchinha para o mar depois de admirar sua beleza por um tempo, ou
de assoprar a joaninha que pousou no seu dedo (mas não antes de se ter um
ataque de fofura) é uma arte. Há que
se ter um bocado de ritmo para abraçar e para soltar. Dançar com a vida.
É
preciso celebrar os finais, seja com uma canção alegre ou com alguma dose de
melancolia. Porque se der ponto sem nó, o tecido da vida se perde, se esgarça.
Aí não tem graça.
Me
lembro dela cortando galinha. Ela me ensinava a cortar, mas sempre estourava o
fel e ela ficava nervosa, pois amargava a carne.
Era
sempre aquela galinha de cabidela com muita graxa. Vó cabocla do sítio, neta
bicho de cidade. E eu me perguntava: “De carro, vó?”
Não,
de sangue. Sangrar a bichinha até a última gota era de lei, mas eu não sabia.
Achava que não precisava e resolvi ajudar jogando o sangue fora. O vermelho foi
tingindo a terra seca e ela deu um tapinha de reprovação na minha mão. Depois
se arrependeu: não queria chatear minha mãe.
Ah,
que saudades de Irene. Do seu riso frouxo, do seu coração ensolarado. De mandar
as crianças irem brincar no terreiro, porque ia contar piada. Custa acreditar.
Sofria demais, amava demais. Mas tirava troça da dor.
Irene
não dava beijo, dava cheiro. E seu cheiro era de Alma de Flores.
Meu
coração é burro, Irene. Demorou a te compreender por completo. Não pude crescer
perto de suas risadas, de sua galinha cheia de graxa, mas sua presença tingiu
minha vida de vermelho, como a tigela de sangue que derrubei no terreiro.
Para pessoas que se relacionam e se deixam transformar
Foi-me perguntado qual era a
coisa mais legal do mundo. Chocolate? Montanha-russa? Praia em dia de calor? Dançar
um rock n´roll? Um coelhinho fofo?
Tudo isso é muito bom, mas não
sei se uma destas isolada pode ser A coisa mais legal do mundo. E também
acredito que coloca-las em um ranking seria bem imbecil, porque a categoria “coisa
mais legal do mundo” não dá conta da diversidade de sensações que todas essas
coisas podem nos causar e também não considera que uma mesma coisa - destas que
citei e as muitas outras que ignorei - podem ser incríveis para uns e
torturantes para outros.
É por isso que fujo de perguntas
totalizantes como esta. Tentar respondê-las da mesma maneira me aflige.
Entretanto, o exercício da reflexão pode subverter este jogo – de um pergunta
totalizante, não virá uma resposta totalizante, sequer pode vir uma resposta. O
que é interessante é que eu cheguei a uma resposta, não em caráter definitivo,
mas que para o momento me parece boa.
A coisa mais legal do mundo é o afeto,
mais especificamente a capacidade de oferecê-lo a outras pessoas. Não falo de
sentimento, que para mim é uma categoria que já caiu de podre. É só um juízo de
valor previamente estabelecido, que cada vez menos corresponde à (minha) realidade
e ao colorido das relações. Falo da nossa própria capacidade de gostar das
pessoas. É o que me deixa imensamente feliz, me faz gostar da vida com suas
montanhas-russas, chocolates, e praias em dias ensolarados.
Gosto também da solidão.
Inclusive cada vez suspeito mais de relacionamentos, de todas as ordens - entre
amigos, casais, pais e filhos - com gente que não se desgruda. Soa falso para
mim, principalmente depois de ver relação e afeto onde de fato havia só
conveniência, e pior: temporária. Tudo bem com os hiatos. Tudo bem com os
interesses divergentes. Tudo bem com o tempo escasso que a gente precisa desafiar
para estar com gente querida, para não ficar só demais.
Triste é que nem todo mundo
entende este afeto, que sendo maleável e resistente, é capaz de preencher
fissuras com delicadeza. Eu não consigo suportar esta ignorância, já suportei
por tempo demais e quase quebrei com isso. Não tenho tempo para essa gente, que
hoje em dia, corto da vida sem delongas e sem meios-termos. Do mesmo jeito que
minha avó matava galinhas para o almoço: somente um corte seco.
Viver o afeto assim, descolado de
jogos pré-estabelecidos, contratos, moedas de troca, matou um pouco da minha
carência, que agora só aparece quando me lembro desta ignorância afetiva que
citei no parágrafo anterior. É simples, mas ao mesmo tempo demanda coragem.
Viver assim é uma opção radical, mas francamente, não vejo outra. Nem sempre
acerto, mas minha própria capacidade de amar me completa.
Love is greatest thing that we have! (O que eu disse não é inédito, mas estas descobertas só batem à nossa porta quando se vive. Mas olha só que este pesquisador de Harvard está dizendo sobre felicidade e satisfação com a vida, a partir de dados de um estudo que existe há 75 anos!)
(Segunda Parte do meu Festival de Bobagens: Sur le non sens (das bobagens): O que se aproveita?)
Neste
caso, não é exatamente uma bobagem, muito pelo contrário. Eu estava falando do
meu trabalho e da minha pesquisa, mais precisamente de como é difícil persistir
em propostas que partem de pressuspostos completamente diferentes do que regem
a escola. Mas como estas questões desafiam não só meu intelecto e sim minha
vida inteira, eu devo ter falado demais. Feito da aula terapia, por mais que eu
não quisesse.
Entendam,
não se trata de fazer da aula um Muro das Lamentações. Trata-se de estar fartx
de tantos muros, os reais e os invisíveis. Trata-se de o quanto estes muros
doem (mais aqui).
E, evidentemente, de nem sempre saber o
que fazer com eles. Ou de identificar onde exatamente os muros conceituais
estão.
Prof. Carminda,
porém, com seu blend de perspicácia
com delicadeza e ternura, soube fazer a síntese. Ela disse que quando a gente descobreonde está o muro, imediatamente a gente sabe
o que fazer com ele. Esta é a tarefa da minha pesquisa e da minha vida,
enquanto professora de Arte de escola pública.
Esta
é a primeira tarefa. Muro de Berlim,
2015.
A imagem
do muro me afeta profundamente já há algum tempo, e a experiência de ver o que
sobrou do Muro de Berlim apenas me fez ver com meus próprios olhos o horror que
estes muros representam. E como ainda não aprendemos a eliminá-los.
Primeiramente, Berlim não se desfez
completamente do muro. Por onde ele passou, existe uma marca (duas fileiras de
paralelepípedos, cortando ruas, calçadas, ciclovias) e às vezes a placa:
A Cidade e suas cicatrizes. Provavelmente perto
da Postdamer Platz, 2015.
O que
restou do Muro, de fato, é o
memorial chamado Topographie des Terrors(Topografia
do Terror), exatamente em frente onde ficava a sede da Gestapo. Mesmo que
memórias reeditadas fiquem mais organizadas e ganhem um certo verniz, a
atmosfera mantinha seu horror. Apesar de um sol bonito ainda brilhando às oito
da noite no verão berlinense.
Topographie
des Terrors, 2015.
Estes
painéis mostram a história desde a conjuntura política pós-Primeira Guerra
(República de Weimar) até a ascensão e queda do Nazismo. (Sim, fiz a turista
louca e tirei foto de quase tudo, mas também eu li.) E o que estes painéis me
mostraram? O quão estamos próximos, aqui no Brasil, deste clima que favoreceu o
surgimento do Nazismo, na Alemanha. E depois, nas aulas sobre Currículo e
Formação de Professores, ministrado pelo meu orientador, Prof. Palma, ele cita
um livro (ou uma coleção, não sei ao certo, mas provavelmente este),
em que diz que a educação escolar autoritária durante a República de Weimar foi
fermento na massa do regime nazista. (Encontrei uma referência aqui
também).
O antigo muro, agora protegido por
grades. Virou “peça de museu”...
Esta
citação ao muro de Berlim é para mostrar como ele ainda pode existir, apesar da
tentativa em envidraça-lo e fazer dele acervo do mundo. (Aliás, como ainda está
existindo, atualizado na forma dos muros levantados nas fronteiras para barrar
os refugiados
que tentam se salvar na Europa, por exemplo), e para refletir sobre como a
Educação pode ajudar a construir estes muros.
...E
também como pode destruí-los, em que pese a Ocupação das Escolas pelxs
estudantes secundaristas da Rede Estadual de São Paulo, movimento este que
soube usar os muros da escola a seu favor.
Sonhando
com uma vida sem muros, apesar de ainda estar aprendendo a lidar
com eles. Por enquanto, estou estudando suas fissuras, por onde algum vento
de transformação pode soprar.
(Segundo capítulo do Escrito Errabundo II, em duas partes porque falo e escrevo muita bobagem. Aqui, a intro e primeira parte).
Ser bobo tem suas vantagens:
podemos ser honestos e francos sem grandes consequências. A parte desvantajosa
é que isso pode acontecer por não estar sendo levado muito a sério. (É algo que
invejo nos velhxs: algunxs tem a capacidade de dizer uma verdade dura - ou um
desaforo - e depois fingir demência).
No meu caso - que não estou
muito velha, sou só meio boba – falo umas bobagens às vezes para descansar do
excesso de seriedade, outras por falar pelos cotovelos mesmo. O querido colega
MARQUES, Diego, sempre muito perspicaz, matou a charada – eu estava à vontade
até demais nas aulas de Intervenção Urbana como Práxis Arte Educativa. O “até
demais” é por minha conta, porque concordo com ele.
Assim, como o título aponta, me
coloco à procura do que essas bobagens podem interessar para ampliar a reflexão
sobre o que conversamos e vivemos durante a disciplina – apostando que estes
momentos bobos podem ser indícios de algo mais interessante.
Começo
pelo episódio “A pintura não grita”. Vou tentar puxar este fio do emaranhado e
tecer umas reflexões sobre arte contemporânea: será que ela pode distanciar-se
dela mesma um pouco e se questionar?
Parte I - A pintura não
grita: e daí?
Não
consigo me lembrar exatamente o que a Prof. Carminda disse para eu retomar esta
obra que eu vi há anos no Sesc Pompeia. Entretanto, o que ela disse me fez
recordar da sensação de CTRL+C/CTRL+V (copia e cola) que às vezes tenho com
produções dessa categoria denominada Arte Contemporânea (ou Arte Conceitual),
ao ir, por exemplo, a Bienais de Arte e não me sentir interpelada por nenhuma
(E um pouco por isso é que faz muito tempo que não vou em uma, me xinguem). Justamente
por esta ausência de memórias, me lembrei de uma que me suscitou alguma
provocação, apesar de não ter gostado muito na época. Neste ponto, está o maior
nó do emaranhado: por que fui citar uma obra que eu me recordava (e que de
alguma maneira me provocou a ponto de me lembrar dela) para falar de obras que
parecem se esforçar em ser provocativas ao extremo e acabam por passar em brancas
nuvens?
Como
não sabia o nome da artista nem da obra, pesquisei. Em nome da provocação dos
colegas – em particular o Luís, que me disse justamente isso: se você lembra, é
porque te diz alguma coisa. Mesmo que seja incômodo. Então, vamos a ela: Marcela
Tiboni, O grito, 2003, videoperformance.
A
obra faz alusão à obra O Grito, de Edvard
Munch e questiona o papel na pintura:
Como
trazer a tona a discussão sobre a pintura, justamente sobre uma das técnicas
mais antigas da história da arte? Aqueles que fazem pintura hoje desafiam e são
desafiados a todo momento, expressar-se através da pintura é abrir-se a
inúmeras possibilidades e perceber que praticamente todas elas já foram
pesquisadas, e incansavelmente utilizadas.
Tiboni suscitou essa discussão partindo do gesto e da tinta
puros, fazendo uso de outros suportes - como fotografia e vídeo, numa abordagem
radical.
Impregnar-me de tinta é como ter a possibilidade de entrar em uma
pintura e pesquisa-la por dentro, como se daquele ângulo me fosse mais
favorável desvendar seus mistérios, experimentá-los e quem sabe compreende-los.
Não só tocar a pintura como experimenta-la de fato, alimentar-me dela, usar de
todos os meus sentidos.
Quando
vi esta videoperformance na exposição Tripé, em 2005, no SESC Pompeia, não sei
ao certo se fiquei incomodada ou intrigada com o que ela queria dizer. Acredito
que tenha visto com olhar de criança (sem metáforas, ou simbolismos): mas por
que ela está bebendo tinta? Gritando para dizer que a pintura não grita? Olhei
o livro de visitas: comentários infames, alguns bem escrotos. Questionei minha
colega estudante de artes plásticas (eu trabalhava no SESC como estagiária de
uma exposição na época), se ela também acreditava que a pintura não podia
gritar no nosso tempo. Ela disse que não concordava muito com o ponto de vista
da artista, que para ela a pintura poeticamente ainda pode gritar. O assunto
acabou aí, para voltar 10 anos depois.
Procurar
a “especialista no assunto” (sendo eu naquele momento estudante de Educação
Artística) para averiguar se a obra não dizia coisa com coisa ou se era eu que
não tinha entendido nada, revela um sentimento comum diante dessas produções
enquadradas como contemporâneas. Muitxs estudantes, colocados diante de
produções modernas e/ou contemporâneas, já me fizeram este questionamento
muitas vezes. Uma sensação de ignorância, como se seus sentidos não lhe
bastassem para fruir a obra. Como se tivesse que ler um manual de uso antes. O
fato da Arte Conceitual não fornecer respostas e sim mais perguntas, o fato de
ela não se obrigar a dizer ou mostrar alguma coisa figurativamente, a não ser
agradável aos sentidos, a não ser pacífica são aspectos que considero
positivos, porque a torna propositora. Porém, estes aspectos perdem muito de
suas qualidades caso se tornem pretexto para se enclausurar mais ainda em um
mundo de poucos iniciados, se afastando mais e mais da vida.
(Por
isso, gosto tanto desta canção da banda Lestics: “explica” o conceito da Arte
Contemporânea com maestria, colocando-a mais perto do chão, como se fosse um
bolero que ri da dor-de-cotovelo que ele mesmo conta).
Mesmo artistas
admitem esta questão que estou levantando aqui. Em “Quem tem medo da Arte Contemporânea?”, aos 4’22’’, Tatiana Blass diz: “Para o público em
geral, que não estuda arte, acho que é tão difícil entender Arte Contemporânea
como entender uma cirurgia supercomplexa, um papo de médico”.
O
questionamento que estou fazendo aqui nesta tentativa de esmiuçar meu próprio
dissenso – minha relação com a Arte Contemporânea – é um paradoxo. Se esta categoria:
busca a aproximação entre arte e vida em termos
de poética, materiais, temas;
desconstrói e/ou perlabora conceitos como obra e
artista;
não se
propõe a ser compreendida (assumindo
que a fruição não desconsidera a racionalidade, mas vai além dela);
...
Por que quando alguém tece uma crítica, ou manifesta uma rejeição a Arte
Contemporânea, sempre terá alguém “entendido” para dizer: “Você é que
não entendeu, queridx!” Entendem?
Neste
dia em que eu citei a videoperformance O
Grito - quando os colegas da turma, mesmo que num tom bem-humorado e
relaxado, deram uma boa cutucada no meu cérebro - não cheguei a dizer que o
incomodo não era relacionado a obra que eu citei, nem com arte contemporânea em
si. A “obrigação” de gostar de tudo que
é produção desta categoria sob a pena de ser enquadrado na categoria de careta,
retrógrado, quadrado, caso se manifeste em contrário é que é complicado.
O
que estou propondo aqui, é que nós, arte educadores, artistas, performers,
curadores e quem mais estiver próximo a este universo da arte aceite estes
incômodos como uma oportunidade de se questionar. Se a arte contemporânea
interpela, que se deixe interpelar também, porque estes incômodos são bem
reveladores. Se alguém deixa de manifestá-los (com medo da pecha da ignorância), perde-se essa oportunidade de discutir, refletir, dialogar. É o que
pretendo com este textículo. No meu caso, a oportunidade foi preciosa para
tirar o pó de uma percepção de 10 anos atrás e também para me desvencilhar da
mania antiga de dicomizar tudo em bom/ruim, presta/não presta e por aí vai.
Ao
examinar esta lembrança, percebo que O
Grito tem a cara das conversas que tivemos na disciplina, principalmente porque
questiona uma técnica consagrada brincando
com a disjunção
entre pintura e fotografia. Gostei de ter encontrado
referências da disciplina neste trabalho agora, porque vejo que não foi à toa
que me lembrei dele.
Só
que eu ainda discordo dela em um ponto. A pintura pode ainda dizer muita coisa. Os
trabalhos que o Luis Quesada mostrou em aula, por exemplo são pinturas
figurativas, e a meu ver são tão pós-modernas quanto o trabalho da Tiboni em
termos de proposta, principalmente. E daí, só porque a técnica não é nova, ela
está esgotada?
Este
textículo-ensaio, porém, jamais teria acontecido se eu não tivesse admitido o
incômodo. Aliás, esta é a recomendação que eu dou quando alguém se sentir
incomodado com algum trabalho. Engulam o purgante, a tinta, o que vocês
quiserem e vão (se) investigar.
É
divertido, apesar de trabalhoso. E infinitamente mais saudável, por exemplo, do que aquela
criatura vociferando contra Macaquinhos.
(Para
esta recomendo não engolir tinta e sim uns Activia. Porque falar aquele tempo
todo, com tamanho mau humor, só pode ser constipação intestinal... Olhar ou assistir um trabalho de arte e não gostar é razoável. Nada razoável é manifestação de ódio travestida de crítica de arte).
Quem me conhece ou me lê sabe que não bato bem do pino, por isso vou me poupar de explicar porque estou publicando um Escrito Errabundo II, sem ao menos ter-lhes explicado o que é um escrito errabundo e onde está o primeiro escrito por mim. No máximo, traço algumas narrativas. Nelas é que está a força do mundo - o Universo é feito de histórias, não de átomos (Muriel Rukeyser).
Depois de ter lido Larrosa, descobri que além de poemas, resenhas críticas, contos e crônicas, textículos também podem ser ensaios filosóficos muito dignos. (E nutritivos, sempre). Os textículos desta série são o trabalho final da disciplina Intervenção Urbana como Práxis Arte Educativa, ministrada pela Professora (e já muito querida) Carminda Mendes André, que fiz no meu primeiro ano de Mestrado em Artes na Unesp. Já escrevi muita bobagem aqui, mas muita mesmo. Felizmente, algumas coisas se aproveitam e descobri que eles eram um bom ponto de partida para falar da relação sempre complexa que mantenho com o tempo. Como um ensaio, tem uma forma híbrida - às vezes se leva a sério como escrita acadêmica, mas uma hora eu não me aguento e tiro sarro disso. (A cambalhota do Drummond, lembram?) Todavia, não é porque estou brincando, que não estou falando sério... E LÁ VAMOS NÓS!
Desde
2008, eu mantenho este blog chamado Textículos
de Mulher. Atualmente com postagens mais rarefeitas, porém acredito
que é por causa dele que compreendo o que é uma escrita ensaística, como Larrosa
Bondía (2003), no artigo O ensaio e a
escrita acadêmica, onde ele trata do artigo como uma escrita subjetiva e
híbrida.
O ensaísta inicia no meio e termina no
meio, começa falando do que quer falar, diz o que quer e termina quando sente
que chegou ao final e não por que já nada resta a dizer, sem nenhuma pretensão
de totalidade. (BONDIA, 2003, p. 12).
A escrita de textículos – este nome genérico para textos
em prosa, que podem ser crônica, conto, crítica de alguma coisa que assisti e
que me provocou o pensamento, relato de uma experiência pessoal ou uma reflexão
sobre um fato político ou qualquer coisa que me cause espanto – desde sempre
seguiu essa não lógica, este caminhar no escuro sem motivo definido (não me
obrigo nem pela vontade de manter o blog atualizado, se tenho leitores
assíduos, nem fico sabendo): caminho porque quero caminhar, escrevo porque
quero escrever. Ser uma fazedora de textículos,
então, é um exercício de desobrigação, exatamente como Adorno (2003)
coloca, citado por Larrosa:
Felicidade
e jogo lhe são essenciais. Ele não começa com Adão e Eva, mas com aquilo sobre
o que se deseja falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter
chegado ao fim, não onde nada mais resta a dizer: ocupa, deste modo, um lugar
entre os despropósitos (ADORNO, 2003 apud BONDÍA, 2003, p. 109).
Neste
jogo de me deliciar com as palavras - porque organizam temporariamente minha
confusão - descobri muitas obviedades, discussões que já estavam postas, mas
como diz outro blogueiro que gosto bastante, Rogério Skylab, “se quer novidade,
leia jornais” (Eu poderia emendar até
Raul Seixas, que dispensou os jornais, porque descobriu que “mentir
sozinho eu sou capaz”, mas não vou. Este é um trabalho acadêmico
lotado de foco e ironia).
Por
ter derivado tanto tempo nestes botes falantes, quando começamos a discussão sobre moderno/projeto moderno/modernidade e pós-modernidade me soava familiar, apesar
de não ter lido anteriormente Lyotard, Agambem, Foucault, Baudelaire. A
disjunção do contemporâneo, a modernidade grávida do pós-moderno, aquilo que
nos desafia por ser novo e velho simultaneamente, por exemplo, fervilhavam na
minha cabeça desde muito tempo. E saber que estes filósofos existem e tratam
destes assuntos quando eu sequer sabia da existência deles não diminui a
temperatura dos meus pensamentos. Eu só rio de mim mesma por ter inventado a
pólvora pela segunda vez.
Como
eu gosto de autocitação, vou colocar alguns parágrafos aqui – talvez seja hora
de revisitá-los junto com os textos lidos e discutidos nas tardes de quarta do
segundo semestre, mas a análise deixa para depois:
“(...) se é “da minha época”, é
datado já, não faz parte da geração deles”.
É aquele “hit do momento”, condenado ao esquecimento logo
depois. Hoje, a publicidade, a cultura visual e digital revisitam estas múmias
do passado - não sem ironia e sarcasmo - e “velhas piadas” ganham seu F5
(comando do Internet Explorer para atualizar uma página). Reler este textículo de 2008 tem algo de muito
engraçado. Como ele já tem sete anos, algumas coisas são citadas como o “último
grito da moda” já não existem mais, como MSN e Orkut. E talvez meus alunos de
agora desconheçam completamente essas “novas velharias”. Ou seja, ele caiu na
armadilha que ele mesmo levantou.
Esta piada velha me fez rir um bocado. Traquinagem de uma colega em fim de semestre.
“Velhas piadas” também me provocam velhas reflexões – apesar de
“velho” hoje em dia ser um conceito bastante questionável. “Só a mulher entre
as coisas, envelhece”, diz Adélia Prado. Isso fornece um gancho para o próximo textículo. Piadas Velhas, o Provocador e Eu relata meu brevíssimo encontro com
Antônio Abujamra. Eu já estava formada e fui assisti-lo na FAMOSP em um projeto
que se chamava Teatro na Universidade, coordenado por Paulo Goulart e Nicete
Bruno. Como boas alunas egressas que éramos eu e minha amiga na época, a
coordenadora do nosso curso perguntou se queríamos conversar com ele depois do
espetáculo. Aceitamos. Eu por falar demais me enfiei numa minissaia justa, mas
que me deu um bom caldo para reflexão: qual o problema com piadas velhas? (Clichês
e coisas antigas que você conheceu só agora, mas que para um monte de gente não
é nem mais novidade). Ao contrário do anterior, que quis ser moderninho e deu
uma mofada, este textículo está tão novinho em folha que hoje, não mudaria dele uma
palavra sequer: manteve sua promessa de poder ser consumido a
qualquer momento sem perder sua validade. Sua ironia dolorida em relação ao neoconservadorismo
burguês (e moderno), citado por Habermas no texto que lemos, só se tornou mais
intensa e estarrecida com ela mesma – quisera ela que estivesse datada.
“(...)
Filhos da Revolução (de qual delas eu não nem sei mais), nascemos com saudades
dos anos 60, até da repressão. Ah, os presos, torturados, exilados e até os
desaparecidos é que foram felizes! Eles tinham uma ideologia para viver!
Tenho
a impressão de que a gente cresceu com a ideia de que não era necessário lutar
por mais nada. Com esta democracia instantânea (basta adicionar água e pronto),
lutar por qual causa? Tantas vezes acreditei nessa piada velha, mesmo sem achar
graça. Enganada redondamente, é claro. As coisas não vão nada bem, este século
XXI está sendo uma grandissíssima merda, por motivos vários que renderiam um
novo Textículo.” (Piadas Velhas, o Provocador e Eu, março de
2008).
Com o momento de que
estamos vivendo - onde até a “democracia instantânea” corre perigo e depois de
passar os olhos por Habermas e Baudelaire, a única ressalva que faço é o que
meu amigo Luiz Filipe colocou nos comentários, e que hoje eu compreendo melhor:
“vai saber por que essa vontade de mudar
um mundo que já passou e não nos damos conta do mundo que acontece a nossa
volta e que está no porvir”. ...Felizmente, xs estudantes
secundaristas de São Paulo parecem nunca ter estado contaminadxs por essa
nostalgia besta que me cegou por tanto tempo. A luta É um devir, é estado
permanente. Preciso me acostumar com isso.
A “nostalgia besta”,
porém, não é de todo negativa. Este sentimento anacrônico que me sempre deslocou
do presente é o “século fraturado” - como Agambem escreveu no O que é Contemporâneo? - que me faz
perceber hoje o quanto sou contemporânea.
A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação com próprio tempo,
que adere a este e ao mesmo tempo, toma distâncias (...). Aqueles que coincidem
muito com a época, que em todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não
são contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não podem
manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEM, 2009, p. 59).
Por esta mesma contemporaneidade anacrônica é que Amy
Winehouse me intrigou desde o primeiro momento que a ouvi e vi. A imagem dela é
muito mais para mim que a disjunção de uma europeia judia com voz de negra
estadunidense, mas este foi sim meu primeiro espanto relacionado a ela. E o
primeiro amor também. Ela destoava de todas suas contemporâneas – não era fashion, não era sexy, não parecia querer ser sexy,
nem saudável (aliás, entrou para o Clube dos 27 como não acontecia desde Kurt
Cobain). E sua morte lenta – quem a viu no show em 2010, percebeu que ela estava
qualquer coisa, menos viva – me fez refletir sobre que tempo é este que estamos
vivendo. E estas reflexões brilharam como uma constelação resplandecendo numa
densa treva (esta luz que não chega até nós, como Agambem colocou), cada vez
que saía das aulas de quarta.
“(...) Este desejo de ser contemporâneo é mais
velho que o mundo. É o mesmo que nos faz datados, amarelados pelo tempo.
Aquele que causa espanto, estranheza ao fazer com que a gente se reencontre com
uma versão velha de si mesmo. (Atire o primeiro álbum de fotografias quem se
viu numa foto antiga e agradeceu aos céus por não ser mais aquela imagem, que
mesmo mais velho, com mais dores para contar, deu graças a Deus porque enfim o
tempo passou).
No passado, quisemos ser modernos. E agora,
queremos ser o que, contemporâneos, pós-contemporâneos? E no futuro, quereremos
o que? Ser úbere-ultra-right-pós o
que?”(Sobre o tempo II, julho de 2011.).
A morte de Amy significou, naquele momento da minha vida, a morte desta nostalgia besta, deste anacronismo.
Achei que eu sucumbiria e me tornaria moderna, no sentido de sempre correr
atrás da novidade, como se tivesse uma cenoura amarrada à minha frente. Apesar de ainda estar
viciada na ruptura, como quem constrói um castelo de cartas e puxa a que está
na base, acredito que acabei me aproximando da ideia da perlaboração (Lyotard),
da pós-modernidade (onde o atual e o anacrônico convivem e as piadas velhas
podem enfim, ser velhas sem ser incomodadas), e o tempo como espiral, que
aprendi com a querida Rita Antunes (co-orientadora e autora do constructo que
apoia minha pesquisa). Todos estes conceitos e ideias estavam orbitando,
esperando a hora de entrarem em cena. E só assim, na forma de textículo, é que
eles poderiam enfim, contracenar.
E como ato final, respeitando o tempo do textículo-ensaio que só acaba quando ele quer, encerro com um poema
que escrevi quando Marty McFly enfim chegou ao futuro, em 21 de outubro de 2015.
Ainda tive que aguentar a provocação do colega Carlos Foucault dizendo: “Nossa, estas eram suas anotações das
aulas da Carminda!” E eram mesmo, descaradamente!
Assim como nas aulas,
falei e escrevi muitas bobagens neste blog e na vida. O tema do próximo ensaio
do meu Escrito Errabundo II será as bobagens que eu disse em aula, mas que
também me serviram para a reflexão.
Referências ALVES, F. T. (Auto citação pouca é bobagem). Textículos de Mulher. Disponível aqui mesmo!
AGAMBEM, Giorgio. O que é contemporâneo e outros
ensaios. Chapecó, SC: Argos, 2009.
BONDÍA, Jorge Larrosa. O ensaio e a escrita acadêmica. Revista Educação & Realidade:
set/dez. 2003, p. 101-115.