sábado, 19 de dezembro de 2015

Sur le non-sens (Das bobagens): o que se aproveita?

(Segundo capítulo do Escrito Errabundo II, em duas partes porque falo e escrevo muita bobagem. Aqui, a intro e primeira parte). 
 
Ser bobo tem suas vantagens: podemos ser honestos e francos sem grandes consequências. A parte desvantajosa é que isso pode acontecer por não estar sendo levado muito a sério. (É algo que invejo nos velhxs: algunxs tem a capacidade de dizer uma verdade dura - ou um desaforo - e depois fingir demência).
 
No meu caso - que não estou muito velha, sou só meio boba – falo umas bobagens às vezes para descansar do excesso de seriedade, outras por falar pelos cotovelos mesmo. O querido colega MARQUES, Diego, sempre muito perspicaz, matou a charada – eu estava à vontade até demais nas aulas de Intervenção Urbana como Práxis Arte Educativa. O “até demais” é por minha conta, porque concordo com ele.
 
Assim, como o título aponta, me coloco à procura do que essas bobagens podem interessar para ampliar a reflexão sobre o que conversamos e vivemos durante a disciplina – apostando que estes momentos bobos podem ser indícios de algo mais interessante.
 
Começo pelo episódio “A pintura não grita”. Vou tentar puxar este fio do emaranhado e tecer umas reflexões sobre arte contemporânea: será que ela pode distanciar-se dela mesma um pouco e se questionar?
 
Parte I - A pintura não grita: e daí?
 
Não consigo me lembrar exatamente o que a Prof. Carminda disse para eu retomar esta obra que eu vi há anos no Sesc Pompeia. Entretanto, o que ela disse me fez recordar da sensação de CTRL+C/CTRL+V (copia e cola) que às vezes tenho com produções dessa categoria denominada Arte Contemporânea (ou Arte Conceitual), ao ir, por exemplo, a Bienais de Arte e não me sentir interpelada por nenhuma (E um pouco por isso é que faz muito tempo que não vou em uma, me xinguem). Justamente por esta ausência de memórias, me lembrei de uma que me suscitou alguma provocação, apesar de não ter gostado muito na época. Neste ponto, está o maior nó do emaranhado: por que fui citar uma obra que eu me recordava (e que de alguma maneira me provocou a ponto de me lembrar dela) para falar de obras que parecem se esforçar em ser provocativas ao extremo e acabam por passar em brancas nuvens?
 
Como não sabia o nome da artista nem da obra, pesquisei. Em nome da provocação dos colegas – em particular o Luís, que me disse justamente isso: se você lembra, é porque te diz alguma coisa. Mesmo que seja incômodo. Então, vamos a ela: Marcela Tiboni, O grito, 2003, videoperformance.  
 

 
A obra faz alusão à obra O Grito, de Edvard Munch e questiona o papel na pintura:
 
Como trazer a tona a discussão sobre a pintura, justamente sobre uma das técnicas mais antigas da história da arte? Aqueles que fazem pintura hoje desafiam e são desafiados a todo momento, expressar-se através da pintura é abrir-se a inúmeras possibilidades e perceber que praticamente todas elas já foram pesquisadas, e incansavelmente utilizadas. 
 
Tiboni suscitou essa discussão partindo do gesto e da tinta puros, fazendo uso de outros suportes - como fotografia e vídeo, numa abordagem radical.
 
Impregnar-me de tinta é como ter a possibilidade de entrar em uma pintura e pesquisa-la por dentro, como se daquele ângulo me fosse mais favorável desvendar seus mistérios, experimentá-los e quem sabe compreende-los. Não só tocar a pintura como experimenta-la de fato, alimentar-me dela, usar de todos os meus sentidos. 
 
Quando vi esta videoperformance na exposição Tripé, em 2005, no SESC Pompeia, não sei ao certo se fiquei incomodada ou intrigada com o que ela queria dizer. Acredito que tenha visto com olhar de criança (sem metáforas, ou simbolismos): mas por que ela está bebendo tinta? Gritando para dizer que a pintura não grita? Olhei o livro de visitas: comentários infames, alguns bem escrotos. Questionei minha colega estudante de artes plásticas (eu trabalhava no SESC como estagiária de uma exposição na época), se ela também acreditava que a pintura não podia gritar no nosso tempo. Ela disse que não concordava muito com o ponto de vista da artista, que para ela a pintura poeticamente ainda pode gritar. O assunto acabou aí, para voltar 10 anos depois.
 
Procurar a “especialista no assunto” (sendo eu naquele momento estudante de Educação Artística) para averiguar se a obra não dizia coisa com coisa ou se era eu que não tinha entendido nada, revela um sentimento comum diante dessas produções enquadradas como contemporâneas. Muitxs estudantes, colocados diante de produções modernas e/ou contemporâneas, já me fizeram este questionamento muitas vezes. Uma sensação de ignorância, como se seus sentidos não lhe bastassem para fruir a obra. Como se tivesse que ler um manual de uso antes. O fato da Arte Conceitual não fornecer respostas e sim mais perguntas, o fato de ela não se obrigar a dizer ou mostrar alguma coisa figurativamente, a não ser agradável aos sentidos, a não ser pacífica são aspectos que considero positivos, porque a torna propositora. Porém, estes aspectos perdem muito de suas qualidades caso se tornem pretexto para se enclausurar mais ainda em um mundo de poucos iniciados, se afastando mais e mais da vida.
 
Coloque o frasco num pedestal
Com um nome esperto ou abstrato
Ou na ausência de inspiração
Chame de Sem Título número quatro
(Lestics, 2009, Sem Título número 4)
 
(Por isso, gosto tanto desta canção da banda Lestics: “explica” o conceito da Arte Contemporânea com maestria, colocando-a mais perto do chão, como se fosse um bolero que ri da dor-de-cotovelo que ele mesmo conta).
 

 
Mesmo artistas admitem esta questão que estou levantando aqui. Em “Quem tem medo da Arte Contemporânea?”, aos 4’22’’, Tatiana Blass diz: “Para o público em geral, que não estuda arte, acho que é tão difícil entender Arte Contemporânea como entender uma cirurgia supercomplexa, um papo de médico”.
 

 
O questionamento que estou fazendo aqui nesta tentativa de esmiuçar meu próprio dissenso – minha relação com a Arte Contemporânea – é um  paradoxo. Se esta categoria: 
busca a aproximação entre arte e vida em termos de poética, materiais, temas;
desconstrói e/ou perlabora conceitos como obra e artista;
não se propõe a ser compreendida (assumindo que a fruição não desconsidera a racionalidade, mas vai além dela);
... Por que quando alguém tece uma crítica, ou manifesta uma rejeição a Arte Contemporânea, sempre terá alguém “entendido” para dizer: “Você é que não entendeu, queridx!” Entendem?
 
Neste dia em que eu citei a videoperformance O Grito - quando os colegas da turma, mesmo que num tom bem-humorado e relaxado, deram uma boa cutucada no meu cérebro - não cheguei a dizer que o incomodo não era relacionado a obra que eu citei, nem com arte contemporânea em si.  A “obrigação” de gostar de tudo que é produção desta categoria sob a pena de ser enquadrado na categoria de careta, retrógrado, quadrado, caso se manifeste em contrário é que é complicado.
 
O que estou propondo aqui, é que nós, arte educadores, artistas, performers, curadores e quem mais estiver próximo a este universo da arte aceite estes incômodos como uma oportunidade de se questionar. Se a arte contemporânea interpela, que se deixe interpelar também, porque estes incômodos são bem reveladores. Se alguém deixa de manifestá-los (com medo da pecha da ignorância), perde-se essa oportunidade de discutir, refletir, dialogar. É o que pretendo com este textículo. No meu caso, a oportunidade foi preciosa para tirar o pó de uma percepção de 10 anos atrás e também para me desvencilhar da mania antiga de dicomizar tudo em bom/ruim, presta/não presta e por aí vai.
 
Ao examinar esta lembrança, percebo que O Grito tem a cara das conversas que tivemos na disciplina, principalmente porque questiona uma técnica consagrada brincando com a disjunção entre pintura e fotografia. Gostei de ter encontrado referências da disciplina neste trabalho agora, porque vejo que não foi à toa que me lembrei dele.
 
Só que eu ainda discordo dela em um ponto. A pintura pode ainda dizer muita coisa. Os trabalhos que o Luis Quesada mostrou em aula, por exemplo são pinturas figurativas, e a meu ver são tão pós-modernas quanto o trabalho da Tiboni em termos de proposta, principalmente. E daí, só porque a técnica não é nova, ela está esgotada?
 
Este textículo-ensaio, porém, jamais teria acontecido se eu não tivesse admitido o incômodo. Aliás, esta é a recomendação que eu dou quando alguém se sentir incomodado com algum trabalho. Engulam o purgante, a tinta, o que vocês quiserem e vão (se) investigar.
 
É divertido, apesar de trabalhoso. E infinitamente mais saudável, por exemplo, do que aquela criatura vociferando contra Macaquinhos.
 
 
 
(Para esta recomendo não engolir tinta e sim uns Activia. Porque falar aquele tempo todo, com tamanho mau humor, só pode ser constipação intestinal... Olhar ou assistir um trabalho de arte e não gostar é razoável. Nada razoável é manifestação de ódio travestida de crítica de arte).

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