(Segundo capítulo do Escrito Errabundo II, em duas partes porque falo e escrevo muita bobagem. Aqui, a intro e primeira parte).
Ser bobo tem suas vantagens:
podemos ser honestos e francos sem grandes consequências. A parte desvantajosa
é que isso pode acontecer por não estar sendo levado muito a sério. (É algo que
invejo nos velhxs: algunxs tem a capacidade de dizer uma verdade dura - ou um
desaforo - e depois fingir demência).
No meu caso - que não estou
muito velha, sou só meio boba – falo umas bobagens às vezes para descansar do
excesso de seriedade, outras por falar pelos cotovelos mesmo. O querido colega
MARQUES, Diego, sempre muito perspicaz, matou a charada – eu estava à vontade
até demais nas aulas de Intervenção Urbana como Práxis Arte Educativa. O “até
demais” é por minha conta, porque concordo com ele.
Assim, como o título aponta, me
coloco à procura do que essas bobagens podem interessar para ampliar a reflexão
sobre o que conversamos e vivemos durante a disciplina – apostando que estes
momentos bobos podem ser indícios de algo mais interessante.
Começo
pelo episódio “A pintura não grita”. Vou tentar puxar este fio do emaranhado e
tecer umas reflexões sobre arte contemporânea: será que ela pode distanciar-se
dela mesma um pouco e se questionar?
Parte I - A pintura não
grita: e daí?
Não
consigo me lembrar exatamente o que a Prof. Carminda disse para eu retomar esta
obra que eu vi há anos no Sesc Pompeia. Entretanto, o que ela disse me fez
recordar da sensação de CTRL+C/CTRL+V (copia e cola) que às vezes tenho com
produções dessa categoria denominada Arte Contemporânea (ou Arte Conceitual),
ao ir, por exemplo, a Bienais de Arte e não me sentir interpelada por nenhuma
(E um pouco por isso é que faz muito tempo que não vou em uma, me xinguem). Justamente
por esta ausência de memórias, me lembrei de uma que me suscitou alguma
provocação, apesar de não ter gostado muito na época. Neste ponto, está o maior
nó do emaranhado: por que fui citar uma obra que eu me recordava (e que de
alguma maneira me provocou a ponto de me lembrar dela) para falar de obras que
parecem se esforçar em ser provocativas ao extremo e acabam por passar em brancas
nuvens?
Como
não sabia o nome da artista nem da obra, pesquisei. Em nome da provocação dos
colegas – em particular o Luís, que me disse justamente isso: se você lembra, é
porque te diz alguma coisa. Mesmo que seja incômodo. Então, vamos a ela: Marcela
Tiboni, O grito, 2003, videoperformance.
A
obra faz alusão à obra O Grito, de Edvard
Munch e questiona o papel na pintura:
Como
trazer a tona a discussão sobre a pintura, justamente sobre uma das técnicas
mais antigas da história da arte? Aqueles que fazem pintura hoje desafiam e são
desafiados a todo momento, expressar-se através da pintura é abrir-se a
inúmeras possibilidades e perceber que praticamente todas elas já foram
pesquisadas, e incansavelmente utilizadas.
Tiboni suscitou essa discussão partindo do gesto e da tinta
puros, fazendo uso de outros suportes - como fotografia e vídeo, numa abordagem
radical.
Impregnar-me de tinta é como ter a possibilidade de entrar em uma
pintura e pesquisa-la por dentro, como se daquele ângulo me fosse mais
favorável desvendar seus mistérios, experimentá-los e quem sabe compreende-los.
Não só tocar a pintura como experimenta-la de fato, alimentar-me dela, usar de
todos os meus sentidos.
Quando
vi esta videoperformance na exposição Tripé, em 2005, no SESC Pompeia, não sei
ao certo se fiquei incomodada ou intrigada com o que ela queria dizer. Acredito
que tenha visto com olhar de criança (sem metáforas, ou simbolismos): mas por
que ela está bebendo tinta? Gritando para dizer que a pintura não grita? Olhei
o livro de visitas: comentários infames, alguns bem escrotos. Questionei minha
colega estudante de artes plásticas (eu trabalhava no SESC como estagiária de
uma exposição na época), se ela também acreditava que a pintura não podia
gritar no nosso tempo. Ela disse que não concordava muito com o ponto de vista
da artista, que para ela a pintura poeticamente ainda pode gritar. O assunto
acabou aí, para voltar 10 anos depois.
Procurar
a “especialista no assunto” (sendo eu naquele momento estudante de Educação
Artística) para averiguar se a obra não dizia coisa com coisa ou se era eu que
não tinha entendido nada, revela um sentimento comum diante dessas produções
enquadradas como contemporâneas. Muitxs estudantes, colocados diante de
produções modernas e/ou contemporâneas, já me fizeram este questionamento
muitas vezes. Uma sensação de ignorância, como se seus sentidos não lhe
bastassem para fruir a obra. Como se tivesse que ler um manual de uso antes. O
fato da Arte Conceitual não fornecer respostas e sim mais perguntas, o fato de
ela não se obrigar a dizer ou mostrar alguma coisa figurativamente, a não ser
agradável aos sentidos, a não ser pacífica são aspectos que considero
positivos, porque a torna propositora. Porém, estes aspectos perdem muito de
suas qualidades caso se tornem pretexto para se enclausurar mais ainda em um
mundo de poucos iniciados, se afastando mais e mais da vida.
Coloque o frasco num pedestal
Com um nome esperto ou
abstrato
Ou na ausência de inspiração
Chame de Sem Título número
quatro
(Por
isso, gosto tanto desta canção da banda Lestics: “explica” o conceito da Arte
Contemporânea com maestria, colocando-a mais perto do chão, como se fosse um
bolero que ri da dor-de-cotovelo que ele mesmo conta).
Mesmo artistas
admitem esta questão que estou levantando aqui. Em “Quem tem medo da Arte Contemporânea?”, aos 4’22’’, Tatiana Blass diz: “Para o público em
geral, que não estuda arte, acho que é tão difícil entender Arte Contemporânea
como entender uma cirurgia supercomplexa, um papo de médico”.
O
questionamento que estou fazendo aqui nesta tentativa de esmiuçar meu próprio
dissenso – minha relação com a Arte Contemporânea – é um paradoxo. Se esta categoria:
busca a aproximação entre arte e vida em termos
de poética, materiais, temas;
desconstrói e/ou perlabora conceitos como obra e
artista;
não se
propõe a ser compreendida (assumindo
que a fruição não desconsidera a racionalidade, mas vai além dela);
...
Por que quando alguém tece uma crítica, ou manifesta uma rejeição a Arte
Contemporânea, sempre terá alguém “entendido” para dizer: “Você é que
não entendeu, queridx!” Entendem?
Neste
dia em que eu citei a videoperformance O
Grito - quando os colegas da turma, mesmo que num tom bem-humorado e
relaxado, deram uma boa cutucada no meu cérebro - não cheguei a dizer que o
incomodo não era relacionado a obra que eu citei, nem com arte contemporânea em
si. A “obrigação” de gostar de tudo que
é produção desta categoria sob a pena de ser enquadrado na categoria de careta,
retrógrado, quadrado, caso se manifeste em contrário é que é complicado.
O
que estou propondo aqui, é que nós, arte educadores, artistas, performers,
curadores e quem mais estiver próximo a este universo da arte aceite estes
incômodos como uma oportunidade de se questionar. Se a arte contemporânea
interpela, que se deixe interpelar também, porque estes incômodos são bem
reveladores. Se alguém deixa de manifestá-los (com medo da pecha da ignorância), perde-se essa oportunidade de discutir, refletir, dialogar. É o que
pretendo com este textículo. No meu caso, a oportunidade foi preciosa para
tirar o pó de uma percepção de 10 anos atrás e também para me desvencilhar da
mania antiga de dicomizar tudo em bom/ruim, presta/não presta e por aí vai.
Ao
examinar esta lembrança, percebo que O
Grito tem a cara das conversas que tivemos na disciplina, principalmente porque
questiona uma técnica consagrada brincando
com a disjunção
entre pintura e fotografia. Gostei de ter encontrado
referências da disciplina neste trabalho agora, porque vejo que não foi à toa
que me lembrei dele.
Só
que eu ainda discordo dela em um ponto. A pintura pode ainda dizer muita coisa. Os
trabalhos que o Luis Quesada mostrou em aula, por exemplo são pinturas
figurativas, e a meu ver são tão pós-modernas quanto o trabalho da Tiboni em
termos de proposta, principalmente. E daí, só porque a técnica não é nova, ela
está esgotada?
Este
textículo-ensaio, porém, jamais teria acontecido se eu não tivesse admitido o
incômodo. Aliás, esta é a recomendação que eu dou quando alguém se sentir
incomodado com algum trabalho. Engulam o purgante, a tinta, o que vocês
quiserem e vão (se) investigar.
É
divertido, apesar de trabalhoso. E infinitamente mais saudável, por exemplo, do que aquela
criatura vociferando contra Macaquinhos.
(Para
esta recomendo não engolir tinta e sim uns Activia. Porque falar aquele tempo
todo, com tamanho mau humor, só pode ser constipação intestinal... Olhar ou assistir um trabalho de arte e não gostar é razoável. Nada razoável é manifestação de ódio travestida de crítica de arte).
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