Para o Rafa, apesar de ele não gostar de Beatles
Lá estava ela outra vez, cutucando o que restou do esmalte. “Longo o caminho para casa neste ônibus...” E colocou o Álbum Branco para rodar no celular.
Voltou a pensar nas unhas. Tinha passado a noite anterior esfregando os azulejos da cozinha e acabara com elas. Acabou também com os ombros, ressuscitando uma bursite que se acreditava extinta. A dor maior, porém, não era esta.
Estava matando lembranças depois de ele ter ido embora de vez. Os azulejos eram as mais notórias. Impossível de se meter tudo numa caixa e esquecer. Mais pichados que trem da Central do Brasil, estavam cheio de mensagens e desenhos dos amigos. O local de expressão artística da casa por excelência, onde todos fumavam, conversavam, cozinhavam, bebiam. O ateliê e a vernissage ao mesmo tempo.
Agora nem um, nem outro: branco parede de hospital. Branco da caixa de Omo inteira que se gastou para fazer o serviço da polícia do esquecimento.
Ponderou antes, pensou em tirar uma foto antes de apagar. Desistiu: uma foto porca de celular só para minimizar a culpa seria ridículo. "Dignidade já!” Ou deixa-se como está, ou apaga-se tudo. Algumas lembranças vão permanecer por algum tempo. Depois começarão a sumir, escorregando pelo Buraco da Memória, lentamente.
Foi dormir sem pensar em nada, tinha até se esquecido que no dia seguinte estaria sem o carro. Gostou da ideia. "Chacoalhar no ônibus é um exercício filosófico". Poderia ler, ouvir música no fone, cochilar. Fez tudo isso até perder-se nos seus pensamentos a respeito da noite passada. Apagar indícios do passado também o elimina? Memória é mesmo subversão?
Todas as perguntas cessaram quando começaram os primeiros acordes de Martha My Dear. Chorou só uma lágrima, daquelas que caem rápido. Não a surpreendeu o seu peso. Carregava os azulejos, as lembranças, o Álbum Branco, o ônibus, tudo.
O Amor virou impessoa... Silly girl.