domingo, 29 de novembro de 2009

Aprendendo a amar vol. 3 - Linha no pipa

Para meus alunos e colegas de trabalho

Os mais antigos ainda acreditam que o professor é um privilegiado - tem três meses de férias por ano! Mentira. Antigamente, em dezembro, o corpo docente das escolas aproveitava a ausência dos alunos dispensados - já se esbaldando de brincar nas ruas desde 30 de novembro - para se afundar numa pilha de diários de classe, provas, trabalhos, livros de atas, relatórios e registros, com os ventiladores quase levantando voo dentro das baias. Quando o trabalho útil e inútil acabava, cogitava-se jogar Uno e comprar sorvetes no atacado até dar o dia da abolição da escravatura, dia em que todo mundo (ou quase) se mandava para a Praia Grande. Mais fácil do que encontrar uma água-viva no Boqueirão, era encontrar por lá um aluno desavisado querendo te entregar trabalho.

Isso, entretanto, acontecia em outros tempos. Agora, os engabinetados alimentam a ilusão que pode-se sustentar as aulas até 22 de dezembro, mantendo o gado confinado até o dia do abate. E ai do professor que dispensar antes por conta, vai para a panela também. Quem diria, o Natal se aproxima e os perus somos nós, com um gume afiado apontando para as nossas fuças.

Sorte nossa que o poder ultrajovem não é nada bobo. Eles sabem que desperdiçar o cheiro quente de dezembro é um verdadeiro sacrilégio. A professorinha até sorriu escondido quando viu seus alunos assinando camisetas no pátio: melhor que isso só vai ser avistar a primeira pipa subindo no céu. Sinal de que as férias já chegaram, à revelia dos engabinetados.


domingo, 22 de novembro de 2009

Strange Fruit - Chapter Two

Há algum tempo atrás ouvi uma doutora em antropologia pela UNESP, da qual só lembro o primeiro nome - Berenice, dizer que a miscigenação brasileira foi estratégia de dominação por parte do colonizador. O mestiço que surgiu da união dos portugueses com indígenas não era filho legítimo deste europeu, logo não tomaria parte do poder do colonizador, mas também não era mais um nativo para lutar contra o domínio imposto de fora. O jeito que me refiro a isso é simplista e até meio sentimental, porque na verdade o colonizador casava com mulheres indígenas com a anuência dos líderes das nações indígenas, para se tornar parte daquele povo e dizimar indígenas de outras nações. Ou seja, o nativo participou ativamente desse processo de miscigenação, por meio de alianças políticas que também interessavam a eles. E assim nasceu a nossa Nação de Vira-latas.

Hoje esse traço misturado do povo brasileiro é celebrado, eu mesma bem gosto de ter nascido com essa tara*. Depois de muito tempo, porém, fui perceber como a misturada rendeu formas peculiares de discriminação. Como eu já disse, não nos reconhecemos pela "raça", pelo sangue - até tentaram, havia aquela papagaiada de dizer que fulano era um "Quatrocentão", sendo que a origem desses fazendeiros paulistas era exatamente a que eu descrevi no parágrafo anterior, com o sangue índio misturado ao português. Então o que sobra é a cor da pele para se reconhecer.

Vi isso claramente há algumas semanas atrás. Na sala de informática, Bethinha, professora de inglês, mostrava fotos e vídeos de Marthin Luther King para nossos alunos de sétima série, para montar uma encenação e eu estava lá, de xereta. Ao ver as fotos de Rosa Parks, que tinha um tom de pele um pouco mais claro, os alunos teimavam em dizer que ela não era negra, e eu tentando explicar que para o estadunidense não existe meio termo (até Michael Jackson foi de negro a branco praticamente sem escala), que para eles não existe mulato, moreno cor-de-jambo, moreno café-com-leite, moreno isso, moreno aquilo, isso é coisa de brasileiro. Até quando uma aluna negra e muito bonita diz: "Se ela é negra, sou o que? Carvão?" Aí, perdi a pose, caí na risada. "Morena cor-de-disco, que tal?"

E nesta última semana, trocando figurinhas com Bethinha, fui mostrar para ela Billie Holiday cantando Strange Fruit, marco na história da música por ter sido a primeira canção que falava abertamente sobre a situação de preconceito racial nos Estados Unidos e eu acabei por descobrir coisas sobre esta canção que nem eu mesma sabia. A letra foi escrita com base em uma foto que retrata a cena mais horrorosa que eu já vi na minha vida, por isso nem me atrevo a colá-la aqui . Ninguém faz ideia do pavor que sinto só em escrever sobre ela, em ter que lembrar e tremo só de pensar que aquilo foi real. A intertextualidade entre a cena, a poesia da letra e a interpretação doída da Lady Day é perfeita.




Até se cantasse Atirei o Pau no Gato, essa mulher cantaria com todo o seu ser a dor do gato atingido. Strange Fruit, porém é a mais pungente de todas e mesmo sem saber inglês, percebe-se que ela não está falando de uma fossa habitual, o sentimento com que ela canta é indescritível com palavras, toda a dor do mundo está ali.

O resto da história está bem contada no link. Sugiro que todos cliquem e leiam atentamente, não só os corajosos e curiosos, porque é bom uma dose de realidade de vez em quando. É bom saber que gente da mesma espécie que nós, organicamente igual a você e a mim, foi capaz de cometer aquela crueldade , e nunca mais se esquecer, para que isso jamais se repita. E olha que não é difícil.

"A gente não sabia que não era um índio, a gente pensou que era um mendingo!" (1997)

Miserere nobis, Domini.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Estranhos Frutos - Parte I

Hoje é dia da Consciência Negra. Eu sou branca, e tenho pais e avós brancos também, mas como são todos brasileiros, eu diria que isso não significa absolutamente nada. Minha bisavó, mãe do meu avô paterno era negra, e ele saiu galego, como se diz lá nas Paraíba, puxando meu bisavô. Minha mãe, a cara do meu avô, é branca, de olhos verdes. De parte de pai, minha bisavó, mãe da minha avó, era mistura de cafuzo (mestiça de índio com negro) com um alemão. Logo, como boa brasileira, sou vira-lata, não tenho raça. Graças a Deus.

A gente se ilude com esta miscigenação toda, há quem pense que o preconceito racial está progressivamente ficando para trás no nosso país, por conta de algumas ações afirmativas e pela ascenção do negro na mídia, a valorização da beleza negra e a celebração do politicamente correto. (Corre pelo mundo uma piadinha de mau-gosto que com isso, até as lendas brasileiras mudaram. Saci-Pererê teria se tornado "Afro-descendente com necessidades especiais". Ficou mais polido, óbvio, mas não deixo de pensar que assim ele perdeu seu charme sapeca.)

Taís Araújo como protagonista de novela das nove da Globo, por exemplo, dividiu opiniões. Nem sei porque, ela já foi protagonista em Da Cor do Pecado. Mas quando ela apareceu em novela do Manuel Carlos, fiquei em dúvida. Justamente um autor que, novela após novela, recria sua versão de mundinho perfeito, onde todas as protagonistas são Helenas, todas as cidades são Rio de Janeiro - porém, todos os bairros são Leblon, todos os doutores são Moretti e todas as canções são bossa nova. Parecia positivo que neste contexto pequeno-burguês aparecesse uma mulher negra, belíssima e bem-sucedida no mundo da moda e não em um papel de empregada que dá pitaco na vida da patroa à torto e à direita, dando a falsa impressão de que Casa Grande e Senzala se dão muito bem por aqui. Não poderia acreditar nessa ideia de cara porque a Rede Globo dá com uma das mãos e retira com a outra. Bingo. Tive a confirmação nessa semana. Bem que Bia Abramo já tinha avisado: o teledramaturgo gosta de fazer mulher apanhar em suas novelas e se elas mesmas se estapearem, melhor ainda.




O discurso de Tereza é odioso: primeiro ela joga nas costas de Helena uma responsabilidade que seria dela, de aguentar e entender pacientemente os pitis da garota mimada, resultado da educação que ela e então marido deixaram de dar para a filha, pelo menos enquanto durasse a viagem que as duas fariam. Depois, lá pelas tantas, ela diz para Helena: "Você não teve tudo o que quis? Não chegou ao topo do mundo da moda, mesmo sendo negra? Não se casou com um homem rico? Para você não é o suficiente?" Lembrando que a desgraceira teria acontecido por causa de um aborto que Helena teria feito no início de sua carreira.

Fica claro nesse discurso como funciona o preconceito racial em terras tupiniquins: multifacetado, mutante, líquido. Primeiro que a maioria das pessoas ignora a tal da miscigenação, só enxerga o tom de pele, o externo. Tanto que a discriminação aumenta com a quantidade de melanina que se carrega na tez, como bem observou Zulu Araújo, em entrevista ao Roda Viva (TV Cultura) da última segunda-feira, no mesmo dia da cena de dramalhão global.



Ele também observou que a sociedade brasileira não é totalmente racista, mas que a elite econômica e midiática ainda o é. Logo, não há meios de sair coisa boa da Globo colocando protagonistas negras em suas novelas, porque isso de maneira nenhuma acaba com o preconceito racial no Brasil: só faz perpetuá-lo, e o que é pior, engendrando uma falsa aura de politicamente correto, para deixar todo mundo bem contente, babando em frente a TV de plasma nova, comprada na liquidação. Estranhos frutos da colonização.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Pano pra manga

A garota Geisy fez o milagre da multiplicação dos tecidos. Seu suposto microvestido deu pano pra manga, nacional e internacionalmente.

Escrevi no domingo, segunda de manhã, a UNIBAN anuncia a expulsão da aluna, com um discurso pra lá de TALEBAN. Depois, MEC aperta, UNE e entidades feministas também, a instituição volta atrás e revoga a expulsão. A única coisa que não mudou é que nenhuma punição foi sequer cogitada a quem participou da arruaça. Claro, vai desagradar o público pagante? Uma coisa é um aluno, uma mensalidade. Outra coisa são quinhentos alunos, quinhentas mensalidades. E ainda acham que vão convencer alguém falando de moral. Moral de uc é rloa, mermão. Agora o discurso é que promoverão "medidas educativas" com os envolvidos no incidente.

A farofa continua, os alunos vaiaram o protesto da UNE e a Unitaleban (ou Uniburca, como vi em algum lugar) ficou com medo da repercussão negativa em torno da instituição, recuando na sua decisão e o MEC também arquivou o caso. Agora o papo de hoje é especulação em torno da especulação que revistas masculinas poderiam talvez estar fazendo agora para quem sabe ter a aluna na capa de uma dessas publicações. Essa conversinha mole convenceu alguém? Tempo!

Como já disse, ela não tem condições de se tornar ícone feminista, por mais que as entidades militantes tentem fazer isso dela. O máximo que ela consegue mesmo é ser celebridade instantânea. Mas fica a discussão de como os estudantes de ensino superior têm sido cada vez mais sectários, com um discursinho vazio e conservador, típico de quem estuda não para adquirir mais conhecimento ou para ampliar a perspectiva com que veem o mundo e sim, para única exclusivamente "obter uma qualificação profissional para conquistar uma posição de destaque no concorrido mercado de trabalho". Não é esse o tom publicitário de qualquer Unicoisa que a gente vê por aí?

O resultado está aí: diplomas e cérebros de minhoca fabricados em série, a toque de caixa. E quem acha que isso é coisa de instituições particulares que pipocaram a partir da segunda metade da década de 90, está enganado. Alunos de instituições públicas* e tradicionais também estão com sério atrofiamento mental. Vizinhíssimo, mestrando em História, sempre fala do desencanto com que vê na bicharada que entra na USP ultimamente, por exemplo. Trabalhei com alunos da PUC como estagiária numa exposição e alguns deles eram tão tontinhos e vazios que até desencanei do complexo de vira-lata que eu tinha de não estudar em uma grande instituição tradicional.

Não estou falando só na teoria. Estudei numa instituição pequena, com público C e D, conservadora até as tampas. Vi muitos colegas que só estavam a fim de conseguir o diploma ao final de três anos e de preferência, na Lei do Mínimo Esforço. As instituições estimulam esse pensamento. Esqueçam da visão iluminista da universidade como templo de conhecimento, isso é coisa do passado, na visão pragmática e mercantilista com que a Educação é tratada nos nossos tempos. Penso, logo desisto.

*Exceção: Nem tudo está perdido. No meio das notícias sobre o caso da Uniburca, surge que uma que destoa do tom fútil com que o caso é tratado pela farofa midiática. Alunos da UnB promoveram um protesto hoje em frente a reitoria da universidade em apoio a aluna da Uniban e denunciando casos semelhantes de violência contra a mulher e outras minorias acontecidos na instituição de Brasília. Alguém precisa reagir. Meus bichos feministas voltaram, oba!

domingo, 1 de novembro de 2009

Sobre minissaias e universitários

Essa fornalha anda tão parada, onde se meteu a dona dos textículos? Na roda-viva, evidentemente. É incrível, pode se passar duzentos anos, meus questionamentos são os mesmos, não por falta de criatividade, mas porque os motivos permanecem. Como diz papi: "mudam as moscas, mas a merda é a mesma!" Para variar, um monte de ideias ficaram pra trás, mas nem acho isso tão ruim. Estou vivendo, e num ritmo tão frenético que capturar certos momentos é quase impossível. Foda é que não consigo viver sem isso: sem escrever, sem criar, sem Textículos. Socooooooooorro!

O que me salva é que quando acho que já me tornei definitivamente uma professorinha adequada ao status quo, esperando pacientemente o dia em que o magistério vai me deixar totalmente louca para conseguir uma licença pinel no sexto andar do Servidor, acontece uma que solta meus bichos subversivos na rua. O que me soltou os bichos dessa vez o foi o prosaico caso da minissaia na Uniban.


De início, me revoltei com a reação esdrúxula dessas pessoas. Gente de vinte e poucos anos chocada com minissaia? Como assim, Cabral? Depois, assisti à entrevista da garota na Record domingo passado. Primeiro, ela diz que sua vida se travestiu num inferno depois do ocorrido, mas não consegue disfarçar que está saboreando seus 15 segundinhos de fama com mucho gusto (os 15 minutos de Andy Wahrol, hoje em dia parecem uma eternidade), fazendo questão de conceder as entrevistas (sim, no plural) com o famigerado vestido que causou furor na multidão de estudantes sem cérebro do campus da UNIBAN de Diadema. Ela poderia se tornar uma heroína contra a neo-caretice do século XXI, como uma Rosa Parks do terceiro milênio, que com uma atitude simples de se recusar a se levantar de um lugar no ônibus reservado para brancos em Montgomery, no Alabama, provocou um boicote de 381 dias ao transporte coletivo capitaneado por Marthin Luther King em 1955. Mas aí é que tá, minha gente. A garota não tem cacife para isso. É burra feito uma porta. Soltou pérolas na entrevista como "Desde que eu me entendo POR EU uso roupas desse tipo" e "O tumulto era tão grande que eu não consegui nem SAIR PRA FORA". Dois pleonasmos viciosos em menos de 15 segundos. Pobre de mim, em frente a TV sonhando com uma revolução neo-feminista... Com esse nível de cultura, a tal estudante de turismo no máximo consegue uma vaga em um reality show ou um convite para posar nua e dar bastante trabalho para os arte-finalistas da revista se matando de disfarçar celulites no Photoshop.

A grata surpresa do caso minissaia da Uniban foi encontrar o blog Educação Política, do professor de Ciências Sociais da PUC de Campinas Glauco Cortez, um verdadeiro antídoto para essa burrice institucionalizada. Sobre este acontecido, ele disse: "O caso da estudante da Uniban, que foi covardemente insultada porque vestia uma minissaia, mostra um pouco a cara de São Paulo e também que há um aprendizado educacional no Brasil que está muito distante das humanidades e das capacidades reflexivas. É o exercício da irracionalidade."

Agora, me fala: que eu vou fazer nesse mundo, com uma elite universotária, que se enfurece com uma estudante indo para a faculdade de minissaia e que fala sair pra dentro e entrar pra fora? Este país não é mesmo sério. Aqui tudo vira farofa, não só o metal do Massacration. Por essas e outras continuo congregando pessoas para me acompanharem na minha mudança DE mundo. Quem quiser que follow me.


Notas:
*Sobre Rosa Parks e Martin Luther: Bethinha, obrigada pela troca de ideias e tanto entusiasmo!
*Sobre Massacration: essa farofa pelo menos é inteligente e engraçada. Nada como não se levar a sério, como estes GoodBlood Headbangers.
*Créditos da imagem: http://temasparamulheres.blogspot.com/2008/09/minissaia-e-maxipolmica.html