domingo, 29 de abril de 2012

Poéticas da Dança III - Subvertendo escadas

Uma flor nasceu na rua!
Furou o tédio, o asfalto e o nojo. 
Carlos Drummond de Andrade
I
O antepenúltimo encontro do Poéticas deu o que dançar. Sempre dá na verdade, mas a proposta da vez foi a  mais ousada - e divertida -  até então. 

Quantas vezes reclamei espaço, quantas vezes me vi derreter nas paredes de tédio. Algumas vezes o reivindiquei, outras, inventei. 

Na escola, reivindicar e inventar às vezes é pouco! É preciso transformar. Paredes cinza, bege ou qualquer cor inexpressiva, de preferência horrível. Grades, cadeados, chaves. Por que a gente é assim? Sinceramente, não sei. Quando cheguei já era deste jeito, e a gente só começa a entender a partir do intento de mudar. Eu poderia arriscar explicações a respeito disso, mas o momento é visceral. Deixo para os teóricos teorizarem. 



Para viver são necessários espaços vazios. Experiência não acontece a partir de lugares repletos de tralhas. E nunca vi numa escola, nas quais estudei ou trabalhei pelo menos, uma única sala que pudesse ser esvaziada. Nem a sala de vídeo escapa, vira almoxarifado em época de recebimento de materiais e insumos enviados pela Rede. Até as tentativas de deixar o ambiente mais alegre deixam o ambiente atulhado. Montes de cartazes, desenhos, frufrus e afins fariam Mies Van der Rohe se retorcer no túmulo. 

E como a professorinha se move nestes não-espaços?  Como propor que os alunos se movam nestes espaços em que se configurou no chão uma trilha batida? Como criar realidades poéticas dentro desta realidade engessada?

Este, a meu ver, foi o ponto de partida do último encontro, que culminou numa proposta de intervenção, primeiro nas escadas do IA, depois no Terminal da Barra Funda. 

II
Moro num sobrado, escadas fazem parte da minha vida desde cedo. Minha frustração de infância é que elas não possuem corrimão, para escorregar feito Lucas Silva e Silva em O Mundo da Lua. Mas, pensando bem, sem o corrimão, dava para pular dos degraus direto para o chão, começando dos mais baixos para os mais altos. Subir de dois em dois, depois de três em três degraus. Descer batucando com os chinelos, saber quem subia as escadas pelo ritmo dos passos. Subverter escadas, então, é uma antiga diversão. Seria agora a hora de subverter novas escadas?



Primeiro, as escadas do próprio IA. Mudanças de nível, planos, corrimões... A criança aqui se quebra toda, mas se diverte! Depois o grupo foi dividido em dois, e foi proposto pensar uma improvisação no esquema Viola Spolin (onde, quem, o quê), dentro do espaço da escada. Agora, parei para pensar como a realidade que a gente cria pode ser muito mais forte que aquilo que a gente vê: no momento da improvisação, a escada já não era mais escada, era cachoeira. Era capaz da gente terminar a cena ensopadas!

III
E então, o ápice do encontro: escada por escada, no Terminal da Barra Funda é o que a gente mais encontra. Vai para lá todo o bando: alunos, professoras, coordenadores, equipe de vídeo. A gente tinha 15 minutos para montar uma intervenção, a partir de duas palavras dadas.

Pressa e Contemplação. Pressa existe de sobra nestas escadas, mas há espaço para contemplação? Tivemos que criá-lo. É muito engraçado, já no ensaio a gente já tem uma prévia dos olhares com que vai se deparar. Os de estranhamento são a maioria, mas a gente também encontra quem se diverte com uma pausa nesta marcha interminável rumo a lugar nenhum.

Apresentar o nosso grupo foi moleza: a gente ensaiou com a escada vazia, mas a hora de fazer a cena foi um momento de pico, o que para nós foi uma puta sorte.

O segundo grupo escolheu uma escada rolante, o que acabou fazendo com que outras personagens involuntárias entrassem para a cena como antagonistas. Três, como as feiticeiras de Macbeth, para ser mais exata. Uma delas era a Segurança, a outra era Burocracia e a terceira, Incompetência. A direção do terminal já havia autorizado as intervenções, a Prof. Kathya estava lá com o documento comprovando a autorização e ainda assim ninguém sabia de nada, e fizeram tudo para impedir. Kathya e Roberto em cima tentando negociar, a gente embaixo, esperando com cara de glúteos com um monte de seguranças em volta. Acho que eles pensaram que dentro da câmera tinha uma bomba, ou que seria gravado um clipe póstumo do Michael Jackson, sei lá.




Quando as palavras falham, parte-se para a ação. Uma hora a Bianca se encheu de tudo isso, deu uma olhadela esperta para as outras meninas do grupo e saiu correndo subindo as escadas rolantes que desciam, e a cena acabou acontecendo. Tudo que eles fizeram para impedir, virou parte da cena: desligar as escadas, tentar impedir de quem estava embaixo subir.

Pelo menos em mim, o sentimento que este episódio foi um misto de indignação com riso. Indignada como num país e numa cidade cheia de problemas, uma intervenção de dança em um local público causa mais comoção e preocupação que se alguém tivesse sido assaltado lá dentro, e o rindo de tudo isso porque gente normal é mais louca que a gente pensa.

E a cada escada que subo ou desço naquele terminal ainda hoje, um pouco deste riso ainda permanece. Sempre me lembro da Marília, que sempre detestou aquele terminal: você ainda vê aquelas escadas da mesma maneira?

Conseguimos furar o tédio, o asfalto e o nojo, pelo menos por um dia, e o valor disso é incalculável.

É para todos nós esta cambalhota! Em breve, o registro de mais encontros!

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