quarta-feira, 18 de julho de 2012

Uma história de amor a três

I'm glad to see you back. I thought you were gone forever.
(Vladimir, Waiting for Godot, Act 1, Scene 1)
I
Meu kefi estava perdido, ou eu é que havia me perdido dele. Estou começando a achar que ele gosta de brincar de esconde-esconde comigo. Adora se perder para eu ter de me achar.

Desta vez o encontrei no Rio de Janeiro, batendo um sambinha numa caixa de fósforo. Estava até mais bronzeado, o danadinho. Dei-lhe um costumeiro tapa no ombro: "Onde você esteve este tempo todo, seu safado?" "Tinha ido comprar cigarros, aí resolvi ficar aqui." E sorriu daquele jeitinho zombeteiro que lhe é peculiar.

"Hum, sei." E emendei: "Vou fingir que acredito. Poderia até ficar brava com você, mas não vou não, porque te manjo é de outros tempos, camarada." 

E saímos para brincar perto dos arcos da Lapa, em frente ao Circo Voador, debaixo de uma garoa indecisa. Daquelas que de quase-chuva foi virando Sol.

Conversamos sobre este assunto também: "Você ainda não se convenceu que é movida a bateria solar, mesmo, né? Olha só pra você. Cê tá amarela, menina! Vai tomar sol!"

"Ok, você venceu, estou aqui para isso. Até estiquei minha estadia, assim teremos mais tempo juntos." Demos as mãos e fomos ver se o Rio de Janeiro realmente continua lindo. E continua.

II
Passamos tanto tempo colocando o papo em dia que quando o Sol saiu em todo seu esplendor, no clímax do seu espetáculo, a gente tinha dormido. E acordamos feito o Vagabundo, com seus raios solares soando como uma sirene: "E este Sol na minha caaaaaaaaaaaara!"




"Este Sol indireto, assim batendo nesta janela enorme, me conforta. Necessariamente porque me faz saber que ele sempre esteve aqui, nunca me abandonou. Ao contrário de você, seu vagabundo!", disse-lhe. "Não seja injusta, você sabe porque eu sumo. Senti muito sua falta, sabia? Desta vez, fiquei sinceramente preocupado com você. Cheguei a pensar que não conseguiríamos nos reencontrar!" 

"Own... Mas que fofo é você. Você faz isso de propósito, pensa que eu não sei? 'Té parece índio!  Assim você vai acabar ganhando o Campeonato Mundial de Esconde-esconde, hein? Mas a sua sorte, baby, é que eu também estou ficando craque em te encontrar! Demora, mas eu te acho."

"Elementar, minha cara. Mas desta vez você me assustou com aquela coisa de melancolia, fome, mito de Narciso... Aliás, onde você estava com a cabeça que eu poderia estar em Toronto? Puta frio do cacete!"

"Ah, queria dar umas bandas.Você teria gostado de lá sim, tenho certeza. A gente pode voltar lá na primavera, que você acha? E por que você não poderia estar no Canadá? Parecia que o Brasil tinha se mudado para lá. Até a Luíza estava!"

"Engraçadinha... Embora seu trocadilho seja extremamente sem graça, vou te dar um desconto. Pelo menos você está de volta!"

... Depois de um tempo ouvindo jazz e comendo melancia, decidimos que era hora de ver o Drummond. E ficamos de fazer isso no dia seguinte. 

III

Vimos que o poeta bronzeado (afinal ele não sai daquele banco no calçadão de Copacabana) também é um poeta vigiado, um poeta 1984. Depois de seus óculos terem sido furtados uma par de vezes, agora uma câmera zela pelo poeta do alto de um edifício na Av. Atlântica. E como tudo é passível de se tornar piada pronta neste mundo, a sua estátua é patrocinada por uma marca de lentes. Pagaram a nova armação, colaram com superbonder e instalaram a câmera para não ter mais prejuízo. Rá! Nem a poesia está salva da lógica de mercado. 

Muita gente na fila para ter com o poeta, mas era rápido porque a maioria quer só tirar foto com ele. Quem passa sempre por lá, às vezes dá um sorrisinho e uma batidinha em sua careca, como se o cumprimentasse. E eu, louca, querendo abraçar aquela coisa metálica, dizer o quanto ele está debaixo do meu couro surrado, de quantas vezes ele falou diretamente comigo... Mas ele, sabendo muito bem que não era o poeta e sim sua representação, não se furtou de tirar troça da minha cara e me salvar de uma camisa de força: "Por que você não faz igual a todo mundo e tira uma foto? O poeta sabe da sua piração!" E assim o fiz, até me ofereci para tirar foto para alguns outros passantes. E ninguém sequer desconfiava que eu estava diante do Amor da Minha Vida. 

IV
Na última noite, eu não tinha medo de voltar: tudo estava no meu corpo. O sol nas minhas costas, o vento deslizando por cima delas, o balanço do mar que levei para cama. E o conto do Borges, transformado em canção de ninar naquela voz quente e doce, feito brigadeiro recém-saído da panela. 

Adormecer naquela composição era o gozo mais profundo que eu poderia oferecer. Ele, me vendo do teto, ria da minha boca aberta. Disse que parecia que eu tinha engolido uma estrela cadente. 

V
Na hora de rearranjar as malas e cair no mundo outra vez, por puro cacoete estudei onde levaria o meu amigo, até escutar um grito que quase me faz cair da beliche: "VOCÊ TÁ DOIDA???"

"Doida, eu??? Por quê? Cheirou, bebeu ?!" 

"Você realmente acha que eu vou me dignar a viajar junto do seu biquíni molhado e cheio de areia, para não dizer das outras coisas que você está levando aí nesta mochila? Que eu fiz pra você?"

"Tá bom, tá bom! Foi sem querer. Desculpa, tá, ô Primeira Classe! Mas você não vai voltar comigo?" Caprichei na cara de Gato de Botas.

"Claro que eu vou. Mas eu vou no chapéu da aeromoça, na ponta da asa, mas dentro da sua bolsa não!"

E assim ele fez. Quando cheguei, ele estava grudado na janela do avião. Me deu uma piscadinha e depois um tapa na bunda que me encheu de coragem para enfrentar a vida. Descendo do avião, ele me disse:

"Lembra do gravador do Lucas Silva e Silva? Quando quebrou, ele ficou desesperado, pensando em como ele faria para inventar suas histórias. Seu Orlando disse que para imaginar não era necessário o gravador. Quando ele mostra o gravador consertado, o Lucas dispensa e diz que conseguiu inventar só com a imaginação."



"Claro que eu me lembro! Lucas Silva e Silva ajudou a formar meu caráter!"

"Então, sou mais ou menos como o gravador do Lucas, gata. Agora você me tem na hora que quiser!"

Abri um sorriso enorme. Até que enfim, compreendi: meu kefi é uma entidade wi-fi! Como não pensei nisso antes?

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