Há algumas semanas, a professorinha recebeu de uma grande amiga uma verdadeira herança dada em vida - seu acervo de fitas cassete. Ela não tinha mais onde tocá-las, e viu que a professorinha ainda tinha um aparelho de som capaz de tocar essas preciosidades. Perguntou se poderia levá-las à casa da professorinha, que disse: "Manda aí!", sem saber o tamanho do tesouro. Quilos e mais quilos de fitas cassetes em maletinhas de pano, típicas dos anos 1990. "Meu Deus, que eu vou fazer com tudo isso?!" A professorinha tomou como base para calcular o tamanho do acervo de sua amiga o seu próprio acervo de cassetes, que se resume a apenas uma caixinha. Esqueceu-se que a amiga sempre foi exagerada em tudo.
Era tarde pra recusar, e ficou com o trambolho. Nem abriu as maletas, para não cair em desespero. Ficaram jogadas em um canto por uns dias, até que a professorinha tomasse uma decisão. Jamais as jogaria fora, sabia que lá estava a trilha sonora de uma vida inteira, sem contar as raridades que a amiga tinha. Um dia depois do trabalho a professorinha, abriu o baú de Jack Sparrow Dee: duas maletas com gothic rock e new wave, de corte oitentista, mais três de corte sessentista, cheia de Jovem Guarda, rockabilly, doo wop e surf music. Abriu uma por uma, revirou todas para ver se estavam nomeadas e viu seu desespero aumentar. Aquele acervo era indissiociável, aquelas fitas estavam condenadas a ficarem sempre juntas. Eram de um tempo pré CD-R e pré-download, quando os amigos trocavam músicas emprestando vinis e CD´s e gravando em fita cassete suas próprias coletâneas. Sem Napster, iTunes, e ameaças de inferno e purgatório para quem faz download ilegal. A professorinha tinha certeza que seus alunos não conheciam essa Era. Um dia, ela entrou na sala de aula com uma bolsa no formato de uma fita cassete, e um aluno perguntou: "Que é isso na sua bolsa, Prô?", e a jovem professorinha se sentiu um pterodáctilo. Cogitou até usar botox depois dessa.
Na última semana de aula, quando não haviam mais aulas de fato e o poder ultrajovem andava incontrolável pelos corredores, a professorinha estava de papo com uma aluna que amava música tanto quanto ela, falando de bandas novas e antigas, estilos, álbuns, coisa rara de se acontecer. Um duende soprou no seu ouvido e lá pelas tantas, ela perguntou para a aluna se ela tinha onde tocar fitas cassete. Como a aluna disse que sim, ela ofereceu a ela a porção gothic rock do tesouro herdado. Com certeza, ela saberia dar valor às raridades, a garota tem uma maturidade intelectual invejável. O que não a impediu de sorrir feito criança contente com a oferta.
No dia seguinte, a professorinha subiu para sala com uma das maletas recebidas da amiga e um aparelho de som da era cenozóica, disponível para uso em sala de aula. Ligou o som e foi rebobinar as fitas, o que fez ajuntar em volta dela alguns dos alunos mais curiosos. Ficou lá algum tempo conversando com o poder ultrajovem, relembrando histórias da infância e da adolescência, como a vez que, aos quatro anos, rasgou a capa do disco do Menudo das suas irmãs mais velhas e jogou no vaso sanitário gritando "Eu adoro Menudo! Eu adoro Menudo!"; ou quando ia à missa com jeans rasgado e camiseta de caveira para desespero da mãe da professorinha, aos quinze. Os alunos sabiam que a professorinha não era das mais tradicionais, mas ninguém imaginava que ela fosse tão maluca nos bastidores. Riram, e contaram das suas também fora dos muros da escola. Neste instante, o aparelho de som transmutou-se em uma máquina do tempo, que fita por fita, quebrava as barreiras de geração e autoridade, típicas da escola. Progressivamente, iam se esquecendo dos papéis de professora e alunos, para se tornarem o que realmente são: gente. Com história de vida, recordações, preferências, sentimentos. Seria bom se fosse sempre assim.
Quando o sinal tocou, e todos foram pra casa, a professorinha até se animou. Chegou em casa e abriu o baú de Jack Sparrow Dee, pegou o seu Primeiro Gradiente e deu play na primeira fita. Ia ter muito o que ouvir durante as férias.
Para Cássia e Sandra Dee
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